A SERENIDADE DO ZERO

A SERENIDADE DO ZERO Alexandra Vieira de Almeida




Resenhas - A SERENIDADE DO ZERO


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Krishnamurti 22/02/2018

Uma poesia invadida pela profunda reflexão sobre a existência humana
Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)

Duas ordens de ideias nos ocorrem ao cabo da leitura de uma obra como “A serenidade do zero” de Alexandra Vieira de Almeida. A primeira diz respeito à inspiração do fazer poético, e a segunda, de caráter mais prático ligado ao trabalho artístico pensado. É certo que cada poeta tem suas motivações individuais para o ato de produzir literatura. Entretanto a perspectiva do abandono à inspiração quanto a produção consciente e trabalho rigoroso da poeta são importantíssimos porque nessa confluência encontramos o texto poético na originalidade intrínseca de cada palavra, a mágica descoberta de seus sentidos, até alcançarmos a profundeza de significados que resultam na emoção e reflexão propiciadas pela poesia. Ideias e imagens inspiradas nada seriam sem o trabalho consciencioso da palavra, para que a concretude do texto poético seja viável.
“Deixar as palavras livres / fora das gaiolas inquietantes”. Poema “Sem palavras”.
A criação poética remete a uma pluralidade de sentidos de um mesmo vocábulo, para a experimentação de imagens, de ritmos, de sons. Todas essas combinações requerem conhecimento e o trabalho dedicado da autora. Uma artífice que rompe a barreira do óbvio, do literal e do real para criar imagens poéticas, para colocar poesia em sua criação artística. São essas imagens as responsáveis por dizer o que as palavras não dizem, por possibilitarem a fuga do lugar comum, para um espaço afinal privilegiado onde a palavra “pode ser”.
Poema é linguagem em tensão, já alguém o disse: em extremo de ser e em ser até o extremo. Palavras voltadas sobre suas próprias entranhas, mostrando o reverso da fala: o silêncio e a não significação. A experiência poética é irredutível à palavra e, não obstante, só a palavra a exprime. É essa irredutibilidade da experiência poética à palavra que determina o grau de perspicácia da poeta por ocasião da criação, porque a artífice é capaz de, mesmo frente a obscuridade natural das palavras, usar a sua capacidade construtora para torná-las luminosas e cristalinas, ainda que multifacetadas. É muito, e mais ainda; além deste trabalho específico com a palavra Alexandra toma o cuidado de não atribuir um tom exclusivamente pessoal, busca uma espécie de “eu coletivo” relacionado a questões bem mais amplas. Observe-se como tal consciência se revela até mesmo no alerta do que temos feito sempre, justamente com as palavras:
“o mundo se entorpece com o veneno das palavras”. Poema “Zombeteiro”.
“O mundo com seus números, crenças e símbolos exóticos / só levam a mais confusão dos enredos mal terminados / como uma história embriagada que se adormeceu / nas esquinas mal nutridas da morte”. Poema “Paganismo zero”.
De uma feliz combinação da inspiração criadora da autora aliada à técnica, resultam significativas manifestações como acontece nos poemas “Silêncio”, “A delicadeza do silêncio”, “Desimaginar”, “Meditação”, e “Sem palavras” dentre outros. Percebe-se que, embora faça uso da liberdade própria da poesia, tanto em termos estéticos quanto temáticos Alexandra tem em mente aquilo que Otávio Paz afirmou: “o poema não é uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem”.
“Deus na sua delicadeza diz:
- O vazio não tem gênese, é o nada.
Eu retruco:
- Ah, a poesia... / Vem antes da palavra”. Poema: “Gênese do nada”.
Tendo em vista a disciplina espiritual e clareza de consciência artística que a autora demonstra possuir (coisa rara de encontrar-se mesmo em escritores de larga experiência literária), investiguemos alguns aspectos dos “mistérios da inspiração” ou “questão psicológica” – como queiram-, e nossa dificuldade em compreender corretamente no que consiste a criação poética.
Para tanto partimos da premissa que nos parece bastante plausível. O consciente cósmico está latente no homem em estado de inconsciência. O eu individual se aproxima do conhecimento do pensamento do eu cósmico pelo fenômeno inspirativo, justamente porque a evolução pode conceber-se também como uma expansão do primeiro no segundo. Esse despertar de zonas interiores da consciência pode dar um sentido de expansão, de uma dilatação do eu individual no eu universal
Disso seria um indício aquilo que afirmou Mário Quintana quanto à inspiração, que surge a qualquer momento como um relâmpago. O grande problema é justamente como “fixar o relâmpago”. É como defrontar-se com um pensamento de estrutura e dimensão diversas da normal, com um pensamento que não se apresenta por sucessão lógica, mas por instantaneidade, como se estivesse além da nossa dimensão. O eu na inspiração não concebe mais sucessivamente em encadeamento conclusivo, como ao longo de uma linha, mas no lampejo de um conjunto, como que encontrando-se no interior de uma massa de conceitos que à envolvem por todos os lados ao mesmo tempo. E para “fixar o relâmpago” se tem de passar da dimensão volumétrica à linha e exprimir-se consecutivamente. Nestas condições, indagar, refletir, concatenar, é muito difícil. Por isso não podemos oferecer senão sínteses. Veja-se a esse propósito o poema “Transe”, onde se lê:

“Sou uma ilha de mistérios / rodeada por águas escaldantes
Na luminescência do grito grave / encontro-me com a essência interior
Possuída por minha matéria escrita / derrubo muros de extropecção / na candura de um lapso agudo”.

Incumbe ao poeta artífice, controlar com os seus processos lógicos e experimentais esses produtos porque só então, podem intervir as faculdades humanas de vontade e atenção. Muito bem, e até aqui não vamos descobrindo nada que já não tenha sido dito aos quatro cantos do mundo por inúmeros pensadores. Aquele “pensamento de estrutura e dimensão diversas” da normal pode entrar em sintonia com o nosso. Na verdade a psique humana é um órgão capaz de vibrar e de entrar em ressonância, de transmitir e registrar normalmente correntes psíquicas, porquanto é assim que se forma, se projeta, se comunica e se recebe o pensamento, que, como a luz, circula por toda parte na atmosfera humana e além dela. A este propósito veja-se uma das epígrafes que Alexandra Vieira de Almeida usa em seu livro: “A consciência é uma garrafa vazia num oceano de afetos em maremoto” (Nietzsche). Cada um entra em correspondência como sabe e como pode, conforme sua capacidade.
“Ser Deus é estar só / sem nenhuma vestimenta complexa / que traduza um labirinto de vozes que ecoam e martelam / repetindo uma vida cruel e insana?

O homem repete, multiplica círculos que o afundam no mar da história

Náufragos de si, os homens não encontram / a liberdade dos pássaros sem gaiolas

Escravizando-se em tons escuros / perdem de sentir o esquecimento de tudo / como se tudo fosse um mito sagrado”. Poema “Paganismo zero”.

O consciente da escritora é claramente mobilizado para um contato com o consciente universal, que é Deus imanente, adormecido no profundo do nosso espírito e cujo despertar constitui a evolução, que nos reconduz a Ele como meta. E, então, desse ponto de vista, o fenômeno inspirativo nos parece como uma expansão ilimitada do pequeno consciente individual, no infinito consciente universal. Uma superação sem limites, no que consiste todo fenômeno evolutivo; é um desembocar na infinita liberdade do espírito.
“Desdobrando o universo / encontro ampulhetas estilhaçadas

Areias se desfazem / no véu da coragem

A liberdade é desdobrar o universo ao contrário / não em seu multiplicar incessante / mas em sua miniatura até atingir o ponto zero / como de um gigante em anão

O homem querendo ultrapassar o gigante / não passa de grão molhado de chuva / É um ponto ínfimo na infinitude da vida / em que a memória se desfaz em lágrima / e o esquecimento se costura de felicidade / em tecidos dourados de peles”. Poema “Desdobrando o universo”.

O fenômeno inspirativo pode então definir-se como: “o fenômeno da catarse biológica ou espiritualização ou sublimação mística, visto no seu aspecto consciência. Deus imanente que se encontra também em nós. Para esta interioridade que a inspiração se dirige: a entidade transmissora é espírito e o espírito se alcança sempre andando para o interior da forma física, que constitui a periferia, o seu revestimento externo. Eis o que representa a nosso ver, o fenômeno inspirativo na maioria dos poemas do livro, nas relações entre o eu individual e o eu cósmico, ou em última instância, entre a alma e Deus.
“o homem derrubará os muros da matéria / colocando em seu lugar o desconhecido verso”. Poema “Antimatéria”.
A consciência humana ainda reluta a sair da minoridade. Não nos resta mais tempo para atos de fé e estados de graça, revoluções e guerras de terrorismo. Impõe-se na hora gravíssima que atravessamos como viajantes do cosmos o imprescindível amadurecimento como uma necessidade racional. Livros como “a serenidade do zero” com sua poesia invadida pelas raízes profundas da reflexão acerca da existência humana nos ajudam muito nesse sentido do amadurecimento. Finalmente um deleite para o leitor. A parte final do poema “O imenso papagaio de Flaubert”:

“É preciso mergulhar mais fundo, utilizar uma lupa introspectiva, / mas o eu desaparece, o eu que se agiganta / torna-se minúsculo
Todo o mistério do mundo e dos livros / Só Deus não saberia em seu mudo silêncio? / Só Ele não descortinaria os segredos do universo, / que o homem tenta alcançar em vão?
De Shakespeare a Flaubert, eu me pergunto: / o mistério... / Não seria este o eterno sonho do homem, / seu alento após o sono da morte?
Em que verdade se esconde o homem? / Nas verdes asas inocentes de um pássaro? / No mistério que se esconde entre o Céu e a Terra? / No encontro entre os seres?
Ah, sim, acredito no ser humano / Na humanidade máxima que em mim repousa / De além disto, o homem saberá? / Ou ele dirá que é sonho de um louco?
Prefiro abraçar meu irmão e dizer / a verdade do afeto que nunca morre / em palavras vãs”.

Livro: A serenidade do zero – Poesia, de Alexandra Vieira de Almeida – Editora Penalux, Guaratinguetá-SP, 2017, 100p. O volume está ainda enriquecido com Fortuna Crítica da autora.
ISBN 978-85-5833-293-4
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