Dhiego Morais 05/03/2019Paraíso PerdidoPois que do céu insurge um clarão ainda mais resplandecente, e aquele que um dia já fora o mais belo, agora corrompido, frente a um estandarte de rebelião e junto a sua própria legião, enfrenta as armas divinas. Ininterruptamente o céu se rasga, não há mais compreensão, mas há certa tristeza e revolta. A abóbada celeste sangra e um a um, espírito rebelde a espírito rebelde é expulso, lançado às profundezas do abismo para a sua penitência eterna. Entre eles está a própria Serpente, arremessada em chamas à privação do Inferno. Nasce o Pecado; nasce a Morte. Abraçado ao seu orgulho, ergue-se Satã.
Não é impossível que alguns leitores reconheçam o título, Paraíso Perdido, de alguma de suas incursões pela literatura. Particularmente, no meu caso há certo sabor mais recente devido às minhas aventuras pelas obras de Andrew Pyper, de maneira mais especial devido ao Demonologista, também lançado pela editora Darkside Books. Para quem já leu essa obra deve se lembrar de que o poema de John Milton funcionava como engrenagem principal do romance, estabelecendo um vínculo bem próximo entre a personagem principal e todo o resto. Talvez assim, desde então, tenha havido certa curiosidade em descobrir o porquê de Paraíso Perdido ser um clássico tão atemporal e influente.
“Mais vale reinar no inferno do que servir no céu.”
Paraíso Perdido, lançado sob o selo Darkside Graphic Novel é uma adaptação da obra homônima de John Milton, desta vez para o universo dos quadrinhos, agraciado com as artes de Pablo Auladell, ilustrador e quadrinista espanhol detentor de obras premiadas, tais como La Torre Blanca e Peiter.
Nessa adaptação, os leitores encontrarão a reconstrução da história da rebelião e queda de Satã, que corrompido pelo seu próprio orgulho, por sua inveja, insatisfação e ostensivo questionamento — a promoção da germinação da dúvida e do desejo —, fora atirado para o castigo eterno, expulso de sua terra natal, junto de todos os que se rebelaram. É bastante interessante salientar o enfoque no momento da queda, no resultado da rebelião — mortífero e inclemente —, e no choque pelo resultado, sua incompreensão pelos condenados. A arte de Auladell é primorosamente impactante e expressiva, dotada de um senso de adequação certeiro — ainda que veleje notoriamente pelas inspirações impressionistas.
Como era de se esperar, a apresentação do Paraíso segue pelo Canto II: um jardim de delícias. Satã, alimentado pela malícia e pelo desejo de superar o próprio Criador e tomar parte da criação como seu reino, viaja por paragens inóspitas, buscando as frestas para adentrar o Paraíso e seus jardins, onde então se encontrava a mais nova criatura do Pai, aquele que chamavam de homem. Afinal, que vingança seria melhor do que mostrar que até o mais novo joguete divino poderia ser corrompido frente às escolhas e à ambição, ante ao próprio sabor do conhecimento?
Embora a temática de Paraíso Perdido dispare o alerta para um dos mais batidos clichês da literatura, é muito importante lembrar duas coisas ao leitor indeciso: a primeira, que entre tantos clichês já saboreados, a obra de John Milton é justamente aquela que deveria não ser rotulada desta maneira, pelo menos não se considerarmos sua importância intrínseca para a literatura mundial e a época em que foi originalmente publicada, em 1667, como poema épico. Enquanto que a segunda, trata-se justamente de que agora o poema renasce adaptado brilhantemente por Pablo Auladell para os quadrinhos, fato que pode agradar os leitores que costumam fugir dos clássicos pela linguagem arcaica e pela dificuldade de compreensão do texto, de suas entrelinhas e metáforas; as ilustrações tornam tudo isso mais acessível e visual.
Os cantos seguintes, III e IV, narram a história já conhecida da tentação de Eva pelas palavras da Serpente e das consequências de seus atos. Entretanto, o mais interessante nesse bloco é a reconstrução da história de como a rebelião celeste se sucedeu, bem como o declínio de Lucífer e os dias das batalhas entre as forças Divinas e Rebeldes. A forma como tudo é contado — sob a ótica de um dos arcanjos para Adão e Eva —, com a inserção de todas as classes celestiais, de Hosana, atribui toda a ação que o resto do livro não teve. As impressões de Auladell sobre o momento são ao mesmo tempo esquisitas, divertidas e expressivas.
“Que pressupõem o amor e a virtude quando não são postos à prova?”
John Milton foi um importante militante político para a sua época. Protestante, avesso à monarquia e à tirania, se inspirou em Gênese para construir uma obra rica e metafórica. Graças aos traços de Pablo Auladell, Paraíso Perdido pode ser resgatado de maneira mais visual, com a manutenção de todo o clima sombrio, pela arte que abusa dos cenários escuros; bem como de uma caracterização que intriga, a princípio, pelos rostos desproporcionais, ora humanizados, ora bestializados, e com corpos que frequentemente tem traços que se borram e se fundem com o cenário. O impressionismo da arte de Auladell entrega de maneira surpreendente uma capacidade quase irônica da assimilação das expressões angelicais, demoníacas e humanas. É uma obra de arte em quadrinhos.
Embora Auladell tenha cogitado jogar tudo fora e redesenhar a HQ, entre alguns motivos, devido à diferença de traços que caracterizavam as personagens — Paraíso Perdido foi interrompido e produzido entre uma série de outros trabalhos —, é justamente essa assimetria que proporciona um frescor à adaptação, que, tal como a obra homônima, acompanha um período longo de tempo. Assim, por meio dessa parceria atemporal entre escritor e quadrinista, o leitor é capaz de vivenciar por meio do universo dos quadrinhos, o céu se rasgando em luto e o homem se rendendo ao pecado.
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