Jacqueline 02/11/2014
Esse tal Lucas
Sobra humor, crítica e ironia no livro. Muito boa a ideia de amarrar um livro em torno de um personagem que vive diferentes coisas. Em cada conto (ou crônica?) vamos conhecendo outras de suas facetas ou algumas vão se afirmando coerentemente. Lucas é uma espécie de alter ego do autor e, não raro, desconstrói o óbvio, denuncia hipocrisias e modismos e destila doses salutares de veneno. O livro é dividido em três partes: nas partes 1 e 3, o próprio Lucas figura nos títulos dos contos e, na parte 2, são os diferentes temas que se colocam como tópicos. Logo no início somos apresentados às várias cabeças de um Lucas-hidra, que estão em constante conflito, e vemos algumas das vozes, desejos, necessidades, dúvidas e neuroses que o constituem (Quantos de nós consegue manter sua hidra sobre controle?). Sobra pra todo mundo: pra crítica literária, pra academia, para os políticos, para o sistema de saúde, para os naturebas, os saudáveis, os ricos etc. Algumas situações inusitadas povoam as páginas do livro, como quando:
- um pianista que se joga contra um teclado totalmente indefeso leva a plateia ao delírio, ocasião que faz com que Lucas reaja de forma pouco convencional;
- se indaga sobre a possibilidade real de escuta dos barulhos advindos do banheiro;
- barbariza a vida no campo, dizendo que toda beleza da vida campestre só pode ser devidamente apreciada quando se tem garantido na volta dessa intensa relação um bom banho, um portentoso hotel, jantar, vinho etc.;
- desenvolve a tese de que o princípio da identidade pode ser quebrado: nos jogos eróticos A pode ser não A e não A pode ser A;
concebe um lugar em que se juntariam todas as explicações;
pensa em alguém que envia cartões, dizendo verdades (nada amáveis) a seus familiares;
- concebe uma série intrincada de textos que criticam uns aos outros, ironizando a crítica literária;
faz uma conferência sobre a mesa que se interpõe ente o conferencista e plateia, tratando a academia com sarcasmo;
propõe uma terapia que consiste em fazer em excesso tudo que é prescrito para não se fazer;
- descreve um restaurante chique num vagão de metrô: para saborear a diferença associada à vantagem tem-se que estar perto do diferente (do menos privilegiado). Não basta ter, é preciso mostrar que se tem.
Merecem destaque ainda o conto que fala sobre a fabricação de necessidades e a venda espetaculosa de produtos a ela associada (nesse caso, vale destacar o absurdo da necessidade: injetar minúsculos peixinhos de ouro no sangue a partir do momento que se completa 18 anos acesso à felicidade - e passar o resto da vida administrando ampolas injetáveis quando os peixinho morrem e obstruem alguma artéria (com direito à venda à prazo com juros altos para os pobres e a constituição de um mercado paralelo de ampolas e peixinhos).
Genial o diálogo de ruptura, em que as falas são propositalmente incompletas. Faltam palavras em todas as falas (mas que diferença isso faz, nessas horas não há entendimento possível mesmo, não é? Cada um quer mesmo é apresentar a sua verdade).
Genial também é a forma de escrever um roteiro amoroso (cujo título já desconcerta Maneiras de estar preso), entrelaçando o ponto de vista da personagem, do narrador e do leitor. Foi só começar e pronto. Primeira linha que leio deste texto e quebro a cara porque não posso aceitar que Gago esteja apaixonado por Lil; de fato eu só soube disso várias linhas adiante mas aqui o tempo é outro, você por exemplo que começa a ler esta página fica sabendo que eu não estou de acordo e assim toma conhecimento antecipadamente de que Gago se apaixonou por Lil, mas as coisas não são assim: você ainda não estava aqui (e o texto também não) quando Gago já era meu amante.
Por fim, vale notar uma espécie de ode à literatura contida no conto Lucas, suas discussões partidárias. Militantes não literários propagam que a mensagem dever ter clareza, ser inteligível para todos. Depois de muito contra-argumentar, Lucas vai propor um pacto: simplificar a linguagem, em prol do diretamente comunicável, em troca do abandono de carros e tratores e a consequente volta do pegar na enxada. Tudo de volta ao simples... Justo!
Que bom que alguns como Cortázar transitam tão bem pelo simples e pelo mais complexo ou será que vamos clamar pela volta dos carros de boi?