Felipe.Camargo 01/05/2021
Ouse saber!
De acordo com Kahneman, a ancoragem está relacionada a um tipo de efeito causado pela confiança intuitivamente atribuída a um número dado quando somos chamados a dar respostas numéricas em cenários de incerteza, dessa forma nosso cérebro procura calibrar uma resposta com base em ajustes efetuados tomando como ponto de partida o número de referência. Não sei se alguém já tentou desenvolver algum estudo permutando os números por valores (morais, políticos, filosóficos, etc.), mas foi com a presente teoria, replicada no clássico Rápido e Devagar do psicólogo israelense, que me vi enlaçado ao ler as mais de 600 páginas do livro de Steven Pinker. Digamos que o professor do MIT vá na contramão de cerca de 90% dos autores que li desde minha adolescência e claro, isso me causou enorme estranhamento, mas como estudante de filosofia e também de psicologia, devo atentar-me aos ?misoneísmos? e abrir-me a novas ideias.
A tese do autor é clara e objetiva: o presente momento ao qual vivemos é a melhor era da história da humanidade e o que proporcionou isso foi o iluminismo e o desenvolvimento da ciência. Através de muitos gráficos, dados e estatísticas, Pinker demonstra o quão a fome, a pobreza e a violência diminuíram ao longo dos séculos, e desde os lugares mais abastados aos mais miseráveis, vemos uma vertiginosa queda na mortalidade infantil e um aumento da expectativa de vida, além disso, por mais que ainda nos falte, podemos reivindicar direitos, denunciar violações e celebrar certa liberdade de ser e de nos manifestarmos, o que de certa forma foi reprimido e impossibilitado durante a maior parte da humanidade.
O livro de Pinker é dividido em três partes, sendo que a primeira ele apresenta a importância do iluminismo e como ele possibilitou um mundo melhor; na segunda ele trabalha os mais diferentes itens (vida, saúde, riqueza, desigualdade, meio ambiente, qualidade de vida, etc.) e como eles têm melhorado ao longo dos últimos anos, sempre apresentando dados para provar sua tese e na última parte, ele faz uma apologia a ciência, a razão ao humanismo, levantando uma crítica aos movimentos contra-iluministas, desenvolvido por filósofos, religiosos fundamentalistas e extremistas políticos (tanto de direita quanto de esquerda).
É claro que não concordo com muitas coisas levantadas ao longo do livro e questiono também alguns dados, por exemplo quando ele fala que o desmatamento está caindo, por mais que os números venham sofrendo queda, temos que concordar que a noção de progresso foi responsável por boa parte do extermínio de ecossistemas e isso, mesmo com quedas, é um caminho sem volta. Me também chamou a atenção quando ele associa a expectativa de felicidade com o progresso financeiro. Alguns dados como os levantados por Gianetti (Economia e felicidade, 2001) vão para um lado contrário a associação feita por Pinker, demonstrando que não necessariamente o dinheiro está relacionado a felicidade, mas é necessário entender que a estatística é um instrumento e não um fim em si, por isso, muitas vezes, pode ser manipulada para comprovar ou rechaçar uma tese.
Outro ponto que discordo do autor é a crítica que ele faz aos vários movimentos de questionamento da ciência, acredito que faltou profundidade e discussão, pois ele coloca alguns pensadores de forma bem superficial, como os teóricos de Frankfurt ou até mesmo Nietzsche e autores ?pós-modernos? mais contemporâneos como Foucault e Lacan. Acredito que a denúncia que tais autores fazem não é um irracionalismo sem sentido, mas pontos que podem ser utilizados para avaliarmos os rumos do progresso e não devem ser totalmente rejeitados.
A ciência, por mais que nos trouxe avanços, é construída por seres humanos, que são sujeitos de forças, desejos, vieses cognitivos, interesses e outros elementos que nos impedem de sermos totalmente racionais e sapientes, por isso é necessário certo cuidado para não deificá-la. Entretanto, é inegável que o poder que ela possibilitou ao homem é estratosférico e isso nos traz diversas responsabilidades sobre o mundo ao qual vivemos.
Por fim, gostaria de ter o mesmo otimismo que Pinker, mas talvez a ancoragem me deixe ainda com um pé atrás... mas de fato, tal livro é uma das obras mais otimistas que contemplei e vale muita a pena ser lida.