Beatriz 14/08/2016
1. Introdução
Neste livro, encontram-se reunidos sete contos de Mário de Andrade, os quais partilham de vários pontos em comum. De cara, verifica-se que todos se iniciam com a expressão "Belazarte me contou", o que termina por ligá-los a, pelo menos, uma origem em comum. Caso se deseje saber quem é Belazarte, temos nossa curiosidade satisfeita em um dos contos (Túmulo, túmulo, túmulo), no qual Belazarte narra um acontecimento que se passou "lá em casa mesmo".
Além dessa origem em comum, os contos partilham uma mesma temática e uma ambientação geográfica. São histórias dos subúrbios, dos novos imigrantes, dos seus velhos habitantes e de uma boa dose de miséria, econômica e humana. Compartilha, ainda, uma tristeza que perpassa todo o livro, tornada evidente pela forma como muitos dos contos terminam. Em vez de sermos presenteados com o bordão dos contos de fada "E viveram felizes para sempre", Mário de Andrade nos fere com a afirmação de que certo personagem do conto "foi muito infeliz".
Será apresentado nesse trabalho cinco dos sete contos de Mário, a análise desses contos, o período histórico em que os contos foram escritos, a biografia do autor e o tema misérias na sociedade.
2. Período literário
A obra tem sua origem nas crônicas publicadas pelo autor na revista América Brasileira entre 1923 e 1924. Por se tratar de um escritor inovador rebelou-se contra a mesmice das normas vigentes à época tornando-se um importante modernista e transformador da linguagem.
Belazarte-alter ego de Mário de Andrade (1893-1945)-Tem sua origem nas Crônicas de Malazarte, publicadas pelo autor na revista América Brasileira entre 1923 e 1924.
Na década de 1920, o Brasil ingressava com dificuldades na modernidade, e São Paulo era a porta para entrada dessa modernização tardia. Industrializando-se e urbanizando-se aos poucos, em muitos aspectos a cidade-e o país-continuava amarrada à tradição rural. É esse o contexto dos contos de Belazarte, que Mário de Andrade começou a publicar na revista América Brasileira ainda nos anos 20, no período modernista.
3. Biografia
Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo, em 1893. Um espírito inquieto animava sua impressionante atividade cultural: professor de música, grande pesquisador do folclore, colaborador de vários jornais e revistas, poeta, romancista, critico literário, critico musical, ensaísta de arte, folclore, literatura e música.
No ano de 1917, três fatos importantes: morte do pai; conclusão do curso de piano; e Há uma gota de sangue em cada poema, primeiro livro, publicado sob o pseudônimo de Mário Sobral. Nessa altura, Mário já adquiria fama de erudito. A participação na Semana, à publicação de Paulicéia desvairada e a nomeação como professor catedrático do. Conservatório Dramático e Musical de São Paulo consolidavam o prestigio de Mário de Andrade. A cidade de São Paulo, sua mais profunda paixão, constitui tema frequente de sua obra. Por volta de 1934, Mário foi chefe do Departamento de Cultura de São Paulo. Quatro anos depois, motivos políticos provocaram seu afastamento e a mudança para o Rio, onde exerceu o cargo de professor da Universidade do Distrito Federal. Lá ficou pouco tempo. A ligação com São Paulo era muito forte. A Segunda Guerra Mundial afetou profundamente o ânimo do poeta. Parece que essa foi uma fase de grande angústia existencial. Na tarde de 25 de fevereiro de 45, faleceu Mário de Andrade.
4. Resumo
O besouro e a Rosa
O conto que abre o livro é “O besouro e a Rosa”, foi o “primeiro conto de Belazarte”, escrito em 1923.
A narrativa mistura elementos “realistas”, “naturalistas” e grotescos, o narrador nos conta a história de Rosa, uma moça de 18 anos, que morava com duas tias desde os sete, após sua mãe ter morrido ou ter abandonado Rosa. Era a “cria” da casa de suas tias solteironas, “órfãs do capitão Fragoso Vale”. Vivia praticamente confinada; uma “freirinha”. Apesar disso, chega a ter um pretendente, João, o filho do padeiro da vizinhança, um dos poucos a vê-la com alguma regularidade, pois era o responsável pelas entregas matutinas de pão. Mas o possível romance entre eles nem começará, apesar de João tê-lo desejado muito.
Certa vez, Rosa deixara a janela de seu quarto aberto durante uma noite quente e, de madrugada, um besouro entrou em seu quarto e, sorrateiramente, percorreu seu corpo, provocando na jovem uma reação convulsiva, na qual se misturam repulsa e certo gozo desconhecido e proibido. Esse fato marca uma transformação radical em Rosa. A jovem sente que a intervenção do inseto roubara-lhe, de certa forma, a inocência e que, talvez, nunca viesse a se casar, o que sente como “UMA VERGONHA”. Rosa, então, muda completamente o modo de se relacionar com o mundo e com os outros. Perde, evidentemente, o caráter infantil e a passividade que a caracterizavam e se torna, subitamente, uma mulher indiferente, provocante e amarga, que acreditava não merecer para si nada além de variações de insetos cascudos. Termina por encontrar “seu besouro” ao se casar, abruptamente, com um bêbado da vizinhança, Pedro Mulatão. E o conto termina de modo seco: “Rosa foi muito infeliz”. Irônica, sarcástica e sadicamente, não havia qualquer príncipe à espera dessa pobre Borralheira.
Jaburu malandro
O segundo conto do livro, escrito em 1924, é, em certo aspecto, uma continuação de “O besouro e a Rosa”.
João o padeiro do conto “o besouro e a rosa”, gostava de Rosa, mas ela se casou com outro, Carmela, uma moça muito diferente de Rosa, era bonita, ativa, impaciente, que tinha casa própria e não trabalhava, o consolou e os dois namoraram por um tempo, mas sem muita empolgação da parte dela.
Certo dia um circo chegou à cidade e a moça ficou encantada com a aparente liberdade que eles tinham, um contorcionista “homem cobre” chamado Almeidinha, lhe chamou a atenção, e a menina agora só tinha olhos pra ele. A moça começou a desprezar João que já não entendia nada do que acontecia. Quando João descobriu sofreu, mas logo seguiu a vida, pois tinha que trabalhar.
Carmela continuava encontrando Almeidinha que um dia perguntou de João, ao que Carmela respondeu: “ele queria casar comigo, mas, porém não gosto dele, é bobo. Só com você hei de casar!”. O rapaz, seu jeito esquivo, flexível, fugiu no dia seguinte. Quando Carmela soube chorou muito, a vizinhança ria dela, e mais ninguém quis se casar com ela. Camela foi muito infeliz.
Caim, Caim e o resto
Em “Caim, Caim e o resto”, de 1924, a violência gratuita entre dois irmãos com um fim trágico: um morre estrangulado e o outro perde um dedo. A briga se desenvolve sem nenhum motivo aparente, apenas um jogo de força bruta. Mário de Andrade ironiza as convenções sociais. Aldo é absorvido de seu crime porque perdeu um dedo. O dedo perdido revelaria aos juízes a legítima defesa e insanidade temporária. A mão mutilada justificaria o fratricídio. O assassino de Aldo não teve a mesma sorte, com dez dedos foi condenado. A brutalidade de um ato é amenizada ante um pedaço de corpo comovente.
Menina de olho no fundo
A sexualidade esbarrando as convenções sociais reaparece em “Menina de olho no fundo”, de 1925. Uma bela adolescente, Dolores, apaixona-se por seu professor de violino, Carlos Gomes. Este, para fugir da tentação, relaciona-se com Serafina. A relação proibida aluna/professor segue entre desencontros e jogos de amizade que disfarça o desejo de ambos. E o que os separa? As convenções sociais e a precariedade econômica de Carlos, funcionário do Conservatório, estabelecem os limites dessa relação. Os personagens não são fortes, não levam seus sentimentos às ultimas consequências. Suas ações são oscilantes. Dolores joga com Carlos ao anunciar um noivado. Carlos Gomes, por sua vez, mostra-se mesquinho por pensar na indenização que ganharia ao sair do Conservatório após os boatos de sua relação com a aluna terem chegado aos ouvidos do diretor da escola. Ao não ter firmeza em defender seu emprego, demonstra fraqueza. Dolores, no fim, reafirma a conhecida frase: “O amor é eterno enquanto dura”. Após a separação definitiva de Carlos, imposta pelos pais, e muito choro, a adolescente fica curada da angústia e do desejo por ele em três meses. Os sentimentos mais elevados dissipam-se com o tempo.
Túmulo, túmulo, túmulo
Conto de 1926, Mario de Andrade trabalha com dois personagens socialmente opostos. Aqui, o narrador, Belazarte, também é personagem. Sua relação com seu criado Ellis é uma confusa dependência mútua. Uma relação que fica entre amizade e necessidade. De um lado, a carência afetiva de Belazarte, de outro, a dependência material de Ellis (criado brasileiro e negro) a seu patrão e protetor. O trabalho manual e doméstico, simples e humilde, destina-se ao grupo social descendente dos escravos africanos. A sociedade herdeira de um sistema escravocrata.
Por maior que seja a simpatia de Belazarte, o destino de Ellis já está dado, o máximo que poderá sonhar é em ser chofer, o que já significa uma ascensão social, mas não uma ruptura com a condição de subordinação. Belazarte não deixa de julgar Ellis, vê-lo como mole, criado ruim, ainda que de confiança. O criado, por sua vez, mantém-se na posição de subalterno: em um gesto simbólico, mistura gratidão, cordialidade e submissão beijando a mão do patrão quando este concede a permissão para casar.
Belazarte se torna padrinho do filho de seu criado. A vida vai negando-lhe os sonhos e empurrando Ellis para a miséria e doença. Há um grande abismo de distância sociocultural entre patrão/criado, as diferenças vão além das condições materiais, estão além dos gestos, nas formas em que comem e nos hábitos.
A miséria das classes subalternas insiste em permanecer presente no desenrolar da vida destes, negando-lhes o sonho. O sonho de Ellis de ser chofer não se realiza, ao contrário, a vida deste personagem sofre um retrocesso, Ellis casa cedo, sua sogra tinha uma criança de colo, indicando que tivera filhos cedo. A morte também é prematura. Dolores falece logo após o parto de seu filho. A criança a segue e pouco depois Ellis justifica o terceiro túmulo do título do conto. As fases da vida não têm a mesma duração para patrão/empregado. Para os empregados as necessidades encurtam a própria vida.
5. Análise da obra
As narrativas são introduzidas sempre pela frase "Belazarte me contou", o autor tentou, segundo ele próprio, “grafar exatamente, com o mais contraditório realismo, as inconsequências da fala popular", pesquisa de linguagem de utilizaria em Amar, verbo intransitivo (1926) e que chegaria ao ápice em Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928).
O Narrador recolhe casos de periferia de São Paulo, distantes de sua própria realidade. "Tristonho e Realista", como o qualifica Mário de Andrade, narra histórias de mães e filhos, de meninas que se tornam mulheres, das comunidades de italianos recém-imigrados, a outra face da sociedade urbana brasileira, representada em Amar, verbo intransitivo pela burguesia industrial. Ao mesmo tempo em que encontramos em Belazarte as contradições da sociedade e da modernização, os contos se aproximam da angústia do homem preso em seu cotidiano sem brilho, desenraizado e muitas vezes coberto de sofrimento.
O pessimismo dos Contos de Belazarte é um traço do narrador, que ganhou uma voz tão particular que o autor quase não reconhecia os textos como seus. "Belazarte não sou eu", afirma Mário, invertendo a famosa defesa de Flaubert. "““ ““ Por isso tudo Belazarte existe e estes ‘meus’ contos ele é que os contou “““. “Mas, certamente, é uma das faces do escritor plural que disse serem trezentos e cinquenta.”
Na obra, narrador e personagem surgem como um dos debatedores nas “Crônicas de Malazarte”, como antagonista ao grande otimismo da personagem que dá título às crônicas. A construção de Malazarte, por sua vez, liga-se, entre outras coisas, a Pedro Malazartes, personagem importante das narrativas orais populares brasileiras.
Outro ponto importante é que os contos parecem o tempo todo apelar para nossa “moral ingênua”, apresentando histórias que, de modo geral, despertam imediatamente no leitor a sensação de injustiça, de situação que precisa se reparada. A pobre Rosa, vivendo sequestrada do mundo, uma “freirinha” confinada aos afazeres domésticos de sua vida de “cria da casa” das tias solteironas; o pobre João, padeirinho pobre, esforçado e “bom moço” que quer encontrar uma moça para casar e que é duas vezes preterido; os irmãos Aldo e Tino, que entram em conflito pelo amor de uma vizinha, destruindo a antiga união entre eles; as duas mulheres solitárias, Nízia Figueira e Prima Rufina, vivendo apartadas do mundo numa chácara; o professor de música do conto “Menina de olho no fundo”, que perde o emprego por capricho de uma aluna; o pobre Ellis lutando contra a miséria e tentando, por meio do esforço e do trabalho, construir uma vida para ele, sua esposa e filho; e, talvez no pior de todos os exemplos, Paulino, um menino de quatro anos que vive a miséria em várias expressões: a fome, o abandono, a falta de carinho e cuidado, a humilhação, numa série de injustiças e brutalidades já anunciada no título do conto (“Piá não sofre? Sofre.”), entre outros exemplos.
As narrativas de Mário de Andrade, encontra-se a mesma fatalidade do Conto, mas pelo avesso: ao invés de destinados à felicidade, à recompensa e ao restabelecimento da ordem e da justiça ingênuas, em Belazarte, as personagens parecem fadadas à infelicidade, ao sofrimento e à injustiça: Rosa não apenas não encontra seu príncipe como acaba casado com um “besouro”, o bêbado Pedro Mulatão; Carmela vê frustrados seus sonhos de uma vida diferente daquela que as moças de sua idade e inserção social tinham, pois o “príncipe” que a resgataria desse lodo foge de mansinho, de madrugada, quando sente que o namorico começava a ficar mais sério e comprometedor. Ou ainda, a morte não só não é abolida como é sadicamente reposta e enfatizada, como que decretando a impossibilidade de superação da miséria, tal como ocorre em “Túmulo, túmulo, túmulo”.
6. Tema
O subúrbio, a miséria, a tristeza
A modernização trouxe grandes diferenças sociais, em grandes cidades é visível à divisão social, de um lado da rua há crianças passando fome e do outro lado, executivos dentro de seus paletós bebem vinhos que poderiam várias cestas básicas para essas crianças.
A miséria em que alguns vivem não é só vista em países subdesenvolvidos, mas toda e qualquer sociedade moderna esta cheia de injustiças. O cotidiano é cheio de imagens que passam despercebidas pelo resto das pessoas, mendigos com frio deitados pelas ruas, mulheres cheias de filhos no colo, mas sem nenhum dinheiro no bolso, empregadas desperdiçando água aos litros enquanto limpam a poeira das calçadas.
As desigualdades precisam ter um fim para que a sociedade caminhe em harmonia e evolua, a única solução para que haja igualdade entre as pessoas vem através da educação, educação eleva todos os indivíduos a níveis de cidadãos, tornando-os conscientes do mundo a sua volta, só a educação pode abrir os olhos e mentes.
7. Considerações Finais
Neste trabalho estudamos o livro Os Contos de Belazarte, de Mário de Andrade, publicado em 1934. Nosso primeiro passo foi mostrar o descompasso entre o narrador e o que ele narra. Mario de Andrade tem uma escrita intelectual e muito culta, já Belazarte se caracteriza pelo seu pessimismo exacerbado, os contos se aproximam da angústia do homem preso em seu cotidiano sem brilho, desenraizado e muitas vezes coberto de sofrimento. Nesses contos Mario mostra outra face da sociedade e sua modernização.
Em Contos de Belazarte, o autor lança um olhar ácido e, ao mesmo tempo, poético, sensível e tocante sobre o cotidiano, os sentimentos e relações da pequena burguesia e das pessoas excluídas da sociedade: mulheres pobres, proletários, crianças, empregados, solteironas. Mario mostra nesses contos outra face da sociedade e sua modernização.
Por fim, deve-se prestar especial atenção à linguagem e ortografia utilizada nas histórias. Mário de Andrade faz uso de recursos da língua oral, da linguagem do povo, criando, assim, uma maior proximidade entre o leitor e os tristes personagens que permeiam suas histórias.