João 14/02/2019
Mozart, Sociologia de um Gênio - Norbert Elias
Nesse ensaio, o sociólogo alemão Norbert Elias pretende desconstruir “a ideia de que o ‘gênio artístico’ pode se manifestar em um vácuo social, sem levar em conta a vida do ‘gênio’ enquanto ser humano na convivência com outros [...]”.
De início, Elias promove um resgate biográfico de Mozart a fim de compreender a prematura morte do músico. Cogita que Mozart não era correspondido no amor que nutria pela esposa, tampouco o era no afeto e na obra que dedicava à sociedade de seu tempo. Ao que parece, a insegurança emocional de que se ressentia desde a primeira infância, associada ao distanciamento e (quiçá) à infidelidade de sua esposa na juventude, geraram frustração existencial. Esse estado depressivo se agravou à medida que sua obra não teve a receptividade que merecia na sociedade da época. Logo, espiritualmente abalado, Mozart se torna caminho fácil para a doença e morre aos trinta e cinco anos de idade (1791).
Nota-se que o sociólogo Norbert Elias não está tanto interessado na dimensão social do conflito entre a alta nobreza e a burguesia ascendente, como está na repercussão desse conflito sobre o comportamento individual do artista e/ou do intelectual que vivia sob as condições sociais daquela época. Daí “Mozart” ser um importante estudo de caso a esse respeito. Nota-se que o domínio político da alta nobreza condicionava os padrões de comportamento e os juízos estéticos a que toda sociedade deveria aspirar. Dado que os músicos eruditos de então eram oriundos sobretudo da pequena burguesia, logo precisavam assimilar o modo de vida e o gosto musical da aristocracia reinante a fim de granjearem um bom emprego junto às cortes europeias. Essa ordem e coisas nunca inspirou a simpatia de Mozart. De origem humilde, Mozart aprendeu com o pai (Leopold Mozart), a contragosto, a se comportar e a adequar sua obra ao gosto tradicional da alta nobreza. Suportava com dificuldade as frequentes humilhações e o sentimento de inferioridade que sua posição social inspirava. Aparentemente orgulhoso, Mozart era cônscio de seu extraordinário talento, e se ressentia de não ser reconhecido como um igual na sociedade de Corte. Rebelou-se contra os padrões de comportamento da aristocracia, e, não raramente, burlava o formato tradicional da música de Corte mediante arroubos de criatividade individual.
Contudo, não devemos nos enganar. As atitudes de Mozart não sugerem uma discordância ideológica ou de princípios em relação à sociedade de Corte. Ele se revolta, isto sim, contra sua posição social subordinada e inferior. Consciente de sua inteligência e de sua genialidade musical, quer ser visto como um igual. Aliás, sente-se até superior aos empertigados da Corte. É dono, pois, de um comportamento ambivalente: deseja o reconhecimento de um grupo social que despreza. Movido pelo inconformismo, abandona o emprego da Corte de Salzburgo e se torna “músico autônomo” em um incipiente mercado livre. Porém, a estrutura social da época e a carência de instituições musicais no “mercado livre” não permitem a Mozart uma completa liberação do seu gênio artístico: mesmo na condição de "músico autônomo" ainda dependia de encomendas das Cortes locais, e, para os espetáculos públicos, devia compor ao sabor tradicional da aristocracia dominante. Nas vezes em que se atreveu a compor ao gosto de sua própria imaginação não provocou boa impressão, o que contribuiria para o seu desprestígio perante o público vienense, a ele tão caro. A incompreensão geral sobre a inventividade musical de Mozart caracterizou a relação “outsider-establishment” que guardava com a sociedade de Corte.
Para a perfeita compreensão da arte e de nós mesmos, Elias defende um estudo do artista que não negligencie o seu aspecto humano. Assim, não se deve separar o Mozart-artista do Mozart-homem. Para Elias, há um problema mal resolvido do processo civilizador europeu que consiste em deificar as obras-primas como produtos de gênios sublimes alheios aos instintos humanos. Tal problema surge de um esforço civilizacional voltado a escamotear a natureza animal do homem em prol de uma visão espiritual e romântica do gênio humano. Porém, ao contrário dessa tendência moderna, o sociólogo defende a necessidade de investigar as conexões da obra do artista com a experiência e o destino sociais de seu criador. Elias não crê em um dom inato. Logo, o talento de Mozart não seria congênito. É, isto sim, uma combinação de sua perícia musical (amplo conhecimento adquirido) com uma consciência musical apurada, em sintonia com o fluxo-fantasia que brota de sua mente. A questão é que Mozart “desprivatiza” suas fantasias, ou seja, as traduz por meio de seu material artístico (a música). Logo, o conceito romântico de “gênio” nada mais seria do que a capacidade incomum de comunicar ao público o caótico fluxo-fantasia, dando-lhe inteligibilidade sentimental através do material artístico (o mesmo se aplica à literatura e à pintura).
A “sociologia de um gênio” possibilita, assim, observar a influência que a ordem social da época provocou sobre a criação artística de Mozart. E, sem dúvida, não fosse sua rebelião contra o padrão musical que lhe era encomendado na Corte de Salzburgo, Mozart não nos teria dado a felicidade de experimentar a originalidade musical que nele desabrochou com maior liberdade durante os anos de “músico autônomo” em Viena. Aliás, é provável que Mozart sempre tivesse latente em si a necessidade de dar vasão a esse “fluxo-fantasia” que morava em seu imaginário, algo que só pode realizar com maior liberdade após desvencilhar-se da subserviência que lhe era reclamada na sociedade de Corte de Salzburgo.