Estêvão 03/04/2021Acho que cheguei a uma conclusão sobre minhas leituras: não gosto de narrativas construídas em fragmentos, com tempos narrativos se sobrepondo, pequenas partes de texto que se unem para compor um todo. Foi assim com O pai da menina morta, de Tiago Ferro, e agora com este Entre as mãos, vencedor do prêmio Sesc de 2018 escrito por Juliana Leite.
No entanto, diferentemente da obra de Tiago, em Entre as mãos percebe-se que a estrutura tem um propósito mais bem definido. A obra conta a história de Magdalena, uma artesã que, após sofrer um acidente e ter suas mãos gravemente feridas, precisa encarar uma recuperação lenta sem fazer uso de seu principal instrumento de trabalho.
A palavra “texto” vem de “tecido”, “entrelaçamento”, “tessitura”, e Juliana Leite se aproveita muito bem dessa relação entre trama textual e as tramas dos tapetes que sua personagem fabrica para construir uma narrativa fragmentada, formada por diversas vozes e tempos diferentes. Portanto, assim como os tapetes de Magdalena, esse livro é uma colcha de retalhos, e cabe a nós leitores costurarmos essas partes, dando a elas unidade e sentido.
Além dessa estrutura interessante, as imagens a que nos remete a expressão “entre as mãos” é bastante significativa, pois se relaciona com a rede de apoio e acolhimento que Magdalena encontra em seus amigos e, principalmente, em suas tias, bem como com o fato de estar tudo nas mãos: seu sustento, sua arte, sua força. Além disso, há a inevitável relação com o ofício da escrita.
Diante disso, os sentidos se tornam mais amplos e possibilitam pensarmos sobre as mãos como instrumento de trabalho, principalmente das classes menos favorecidas, em especial as do campo ou mais rudimentares, que encontram na sua força a base de seu sustento, ao mesmo tempo que revelam sua vulnerabilidade.
Indo mais além, em um ano em que a frase “ninguém solta a mão de ninguém” se tornou um slogan, uma obra como Entre as mãos ganha outro peso, pois está nela também a ideia de união, de fortalecimento e de resistência, podendo se estender a um contexto social mais amplo, dialogando com ideias de união de classes.
No entanto, mesmo proporcionando toda essa discussão, foi difícil me conectar à personagem, pois acho que a forma fragmentária mais nos afasta do que nos liga a ela, nos deixando preocupados em como encaixar as peças, e não sentindo os acontecimentos, algo que Entre as mãos tem de mais forte, juntamente com a personagem principal.
Ainda nos pontos negativos, o fato de em momento algum termos contato com os sentimentos de Magdalena, de ouvirmos a sua voz interior durante os acontecimentos é o maior erro do livro. Pois, após uma primeira parte narrada por seu namorado, o mais perto que ficamos de entrar nos sentimentos da personagem é por meio de uma Magdalena mais velha, que, por meio da escrita em tempo futuro, se dirige à Magdalena pós-acidente.
Essa, digamos, terceira personagem, é trazida numa segunda pessoa interessante, porém, ao se dirigir a si mesma em retrospecto, se mostra mais consciente dos fatos e mais racional no modo como organiza as ideias, não nos deixando perceber como Magdalena sentiu e vivenciou os acontecimentos na época em que eles ainda estavam, literalmente, latejando em suas mãos.
Portanto, essa escolha de modo de narrar revela uma preocupação formal excessiva por parte da autora, que abre mão dessa imersão dos leitores nos sentimentos de Magdalena para mostrar seu domínio sobre a narrativa.
E mesmo que os signos estejam bem colocados e sejam repletos de camadas, nossa relação se dá, ou devia se dar, principalmente com os personagens, e essa barreira criada deixa a leitura confusa e pouco envolvente.