Paulo 10/03/2019
Impressões gerais da coletânea:
O nível das histórias presentes aqui é muito elevado. Temos autores como Stevenson, Walt Whitman, Machado de Assis, Lygia Fagundes Telles, Shirley Jackson e até um conto de Stephen King. Todas traduzidas por especialistas garantindo a qualidade do material apresentado. Nenhum problema com a tradução, sendo as dificuldades muito mais relacionadas à leitura e a compreensão de todos os detalhes do conto do que no entendimento do que está escrito. A edição também está muito boa com capa dura, folhas em papel pólen e um prefácio escrito pelo organizador. Só achei um erro mortal na coletânea: a ausência de uma biografia dos autores no começo ou no final da narrativa. Em coletâneas com muitos autores, a bio é praticamente obrigatória porque permite ao leitor conhecer um pouco do autor ao mesmo tempo em que relaciona a outros de seus trabalhos. Entendo que alguns autores são conhecidos, mas isso é praticamente uma obrigatoriedade em materiais desse estilo. Infelizmente preciso pontuar isso porque achei uma falha crassa.
Separei aqui apenas alguns contos para resenhar.
1 - O Barril do Amontillado, de Edgar Allan Poe (5 estrelas):
Ao lado de O Gato Preto, A Queda da Casa de Usher e alguns outros contos, O Barril do Amontillado está entre os meus contos favoritos do autor. Com uma pegada sensacional para o timing do terror, Poe nos entrega uma história de vingança. E uma vingança que lembra bastante as vendettas italianas onde um único desaforo é responsável por décadas e décadas de violência entre famílias. Aqui temos Poe no seu melhor, apresentando uma história memorável.
O Barril do Amontillado tem uma história bem simples. Nosso narrador tem uma vingança a ser feita contra o antagonista, alguém que o humilhou e o difamou (não sabemos como e nem de que forma) e ele arma um plano mortal para ele. Durante as festividades do carnaval italiano, ele alega ao seu "amigo" que recebeu um barril de um suposto vinho Amontillado, mas que ele suspeita ser falso. Nosso protagonista apela para a vaidade de seu rival dizendo que ele seria o único capaz de lhe sanar as dúvidas quanto à qualidade do mesmo. Durante a jornada pelo porão se passará sua cruel vingança.
Uma coisa que Poe sabe fazer muito bem é criar expectativa no leitor. Uma boa história de terror deve levar o leitor através de salões escuros e aos poucos ir entregando o fato de que algo não dará certo ali. Não sairemos ilesos daquela situação. Ao seguir os dois personagens pelas catacumbas, sabemos que alguma coisa acontecerá que irá levar à maldição de algum dos envolvidos. Esse crescendo é que é o grande diferencial das obras do autor e provavelmente esse foi o seu grande legado. Não é o terror chocante, aquele que aparece na sua cara com gosma saindo dos olhos ou cabelos na forma de tentáculos; é o medo pela sobrevivência, do desconhecido que irá atacá-lo de alguma parte que não está visível ao leitor.
Ou seja, sabemos o que o protagonista deseja fazer, só não sabemos o como. Fora que aqueles momentos finais demonstrando todo o desespero do antagonista enquanto o personagem curte aqueles instantes é algo que somente Poe seria capaz de fazer. Seus personagens são torpes e deturpados. O Barril do Amontillado é uma leitura obrigatória para quem curte terror. Sem duvida alguma.
2 - O Ladrão de Corpos, de R.L. Stevenson (4 estrelas):
Aqui estamos diante do famoso autor de O Médico e O Monstro e ele mais uma vez nos apresenta uma história com conotações médicas. Aqui ele nos coloca diante de três personagens que encontram um médico chamado McFarlane e um dos três personagens começa a contar a história do envolvimento de Fetter com este médico. Uma história com requintes mórbidos e apresentando um lado obscuro da medicina do século XIX. Quando os médicos eram mais curiosos e menos éticos. O diferente é fazer uma associação entre o que Walt Whitman disse sobre os professores (e ele refere a Lugare ser apenas um homem mesquinho e não representar a classe) e como Stevenson não mencionada nada a respeito. Pode ser uma associação tola, mas pode ser bastante representativo sobre a sociedade da época.
A escrita de Stevenson é muito tensa. Em O Médico e O Monstro a gente vê todo o aspecto lúgubre da Londres do período. Aqui está mais para sombrio. Aos poucos vamos entrando no clima da narrativa acompanhando o dia-a-dia de um ajudante de uma turma de medicina. Os alunos estudam anatomia humana e animal e, para que tal ocorra, é preciso ter espécimes para realizar as dissecações. Começam a aparecer na turma estranhos corpos muito bem conservados e quase frescos. Isso desperta a suspeita de Fetter que quando descobre do que se trata acaba envolvido em uma trama absolutamente pesada.
Temos aqui uma narrativa que parece ser em primeira pessoa. Uma das três pessoas (um deles é Fetter) é o nosso narrador, mas ele não interage diretamente na história. O que começa apresentando os personagens acaba reduzindo o ritmo na metade da história para falar do envolvimento entre Fetter e McFarlane. O final é surpreendente. Aquilo eu realmente não esperava e dá aquele susto no leitor. Stevenson sabe como fazer esse tipo de narrativa voltada para a exploração de situações inusitadas e estranhas. Dá até para dizer que ele é o precursor dos pulps. Stevenson sempre é recomendado.
3 - A Tapera, de Henrique Coelho Neto (4 estrelas):
Este é mais um autor que eu desconhecia dentro do cenário nacional. Um clássico após algumas pesquisas que eu fiz. De qualquer forma, ele nos apresenta como o Brasil sempre teve escritores muito talentosos e o quanto nós os desconhecemos. Henrique Coelho Neto escreveu para folhetins da época e publicou uma série de romances, mas A Tapera tem uma marca clara dos escritos góticos do período.
A escrita de Coelho Neto é bem diferente, e apesar de representar um período de ascensão do gótico com autores se espelhando em Bram Stoker ou em Mary Shelley, Coelho Neto embarca para um estilo meio barroco. Ele situa sua história em um engenho de açúcar onde um homem vive uma situação horrível graças a uma esposa infiel. Tudo cercado por aquele clima de escravidão onde os negros eram subservientes a seus senhores e onde a sinhá podia fazer tudo o que desejasse. A situação toma um rumo exponencial a partir de uma vingança realizada por um escravo.
O romance tem um tom até inocente se analisarmos direito. O amor do protagonista pela sua esposa chega a ser ingênuo e ele acaba sofrendo com o que se sucede com ele. Ele fica dividido entre o amor por sua ama-de-leite e pela sua esposa. A escrita de Coelho Neto tem muito daqueles exageros do romantismo em que o amor do protagonista é sempre extremo. Seu sofrimento toma sempre proporções colossais a ponto de sua alma chegar a sangrar. Esse nível elevado de exagero nos sentimentos acaba por obscurecer os elementos de terror da narrativa. Quando o elemento do estranho é inserido na história, estamos tão entregues ao sentimentalismo que transborda pelos poros que o susto acaba não acontecendo. Ou seja, eu gostei da história, mas tenho dificuldade em colocá-la como um terror per se.
Por outro lado, o autor tem uma enorme habilidade nas descrições. Elas são grandes sim, mas elas conseguem passar muito bem aquilo que está acontecendo ou transmitir as emoções do narrador. A propósito a história é contada por aquele que a viveu. Porém, é uma narrativa em terceira pessoa com um dos personagens contando a outro o que aconteceu a ele. Ao final temos um momento de estranhamento que fecha bem a narrativa. Gostaria sim de recomendar A Tapera para que os leitores possam conhecer este escritor.
4 - A Mão do Macaco, de W.W. Jacobs (5 estrelas):
Este é um clássico do terror do início do século XX. Para mim, uma história completamente atemporal mostrando o quanto nossas ambições e nossa falta de crença pode nos levar a fazer. Jacobs escreve uma narrativa repleta de humor negro. Aquele tipo de história que você aplaude e diz querer mais dela. De uma forma super simples, o autor conseguiu criar algo nefasto e assombroso.
Aqui somos apresentados a um pai, uma mãe e seu filho que conversam com um soldado que retornou do continente africano após uma viagem de exploração. Lá ele encontrou uma pequena pata de macaco que teria a capacidade de dar três desejos àqueles que o possuírem. Mas, segundo o soldado, o artefato é maligno e tem o hábito de deturpar os pedidos. A família acha que tudo é bobagem e decide brincar com a ideia de fazer desejos à mão do macaco. Bem, o resto acho melhor vocês lerem para ficar sabendo.
Um dos pontos altos da narrativa é a mescla de humor negro com suspense. Ele mantém esse ritmo o tempo todo. Em alguns momentos estamos rindo de alguma tirada do filho ou da esposa. O marido serve como alívio cômico por conta de sua aparente credulidade. Mas, da metade para a frente, o conto ganha contornos bizarros por causa da forma como o artefato passa a agir sobre a família. E o final é arrebatador. O melhor de tudo é que Jacobs não te entrega o que acontece de verdade, mas deixa você imaginar a cena. No gênero do terror, o mais assustador não é o choque causado por imagem aterradora, mas insinuar algo ao leitor e deixar para ele formar a sua própria imagem do terror.
O autor trabalhou muito bem a relação da família. Ele conseguiu em dez páginas fazer com que eu me empatizasse com aqueles três. Quando as situações estranhas começam a acontecer, a gente sente o impacto das desgraças sobre a família. No final, a tristeza de um dos personagens é completamente perceptível e compreensível. A Mão do Macaco está entre os melhores contos desta coletânea. Recomendadíssimo.
5 - A Loteria, de Shirley Jackson (4 estrelas):
Uma das maiores virtudes de Shirley Jackson é a capacidade de manter o suspense do leitor. A incrível capacidade de não entregar de imediato o que ela quer dizer com a história. Aos poucos ela vai nos enredando, construindo uma naturalidade no estranho para que ao final ela possa nos derrubar de uma só vez. A Loteria é, de fato, um conto memorável da autora. Algo que figura entre os clássicos do terror no século XX.
Somos transportados para uma pequena aldeia onde em um determinado dia acontece uma loteria. Todos estão animados para este dia e se reúnem na praça central. Famílias se cumprimentam, brincadeiras entre companheiros são feitas. Tem todo um clima festivo rolando no ar. A velha caixa da loteria está gasta e precisa ser trocada por uma nova. Cada família escolhe o seu representante para tirar um pequeno papel. Tudo é cercado de um sentimento de companheirismo e solidariedade, dando um ar leve à trama. Porém, uma pergunta paira no ar: o que está sendo sorteado nesta loteria?
O que eu mais gostei em A Loteria é o suspense. Shirley não entrega nada antes do final. Absolutamente nada. Você apenas está ali curtindo um dia a mais nas pessoas daquela pequena comunidade. Detalhes mundanos são compartilhados entre os convivas de uma aparente festa. O clima do conto é tão leve que quando chega a página final você toma um susto. A gente começa a ver que algo está errado quando termina a primeira etapa do sorteio. Aí é que a coisa toda degringola. Méritos totais para a mestra do suspense em conseguir imprimir um ritmo tão estranho a uma narrativa violenta como essa. Uma boa escrita e com diálogos tão comuns que você acreditaria se o seu vizinho estivesse os fazendo. Essa naturalidade, algo já visto em Assombração na Casa da Colina, é uma marca registrada dela. E mais: como ela não dá informações antes do final, ela deixa o leitor tentando descobrir o que diabos está acontecendo. Eu imaginei que seria algo terrível, mas nada me preparou para aquilo.
Aqui também tem uma discussão sobre velhos e novos hábitos. Alguns dos membros da comunidade estão criticando vilas próximas que passaram a não mais adotar a loteria. Claro que até aquele momento apenas desconfiamos do que se trata todo aquele ritual. Não dá para saber exatamente o motivo pelo qual ele acontece, mas só podemos desconfiar: controle populacional, manutenção da ética, sentimento de solidariedade, libertação de uma violência contida. Dá para arriscar muita coisa.
6 - Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles (4 estrelas):
Se podemos dizer que A Loteria tem um ritmo natural imposto pela autora, este conto segue pelo mesmo caminho. O que sentimos pelos nossos amores passados? Inveja? Raiva? Remorso? Lygia Fagundes Telles vai procurar explorar um pouco dessa relação em sua narrativa. O que vai se suceder no final te deixará boquiaberto com o cinismo do ser humano.
Raquel e Ricardo marcam um encontro após muitos anos sem se ver. Um amor passado que aparentemente fez com que cada um tomasse seu próprio rumo na vida. Mas, este encontro vai nos mostrar uma conversa franca entre o antigo casal que se lembrarão dos momentos felizes enquanto discutem um pouco dos seus sentimentos. Ricardo conta a Raquel que conhece um bom lugar para ver o pôr do sol. Quando eles chegam até o local, Raquel estranha o fato de o lugar escolhido ser um cemitério. Ela logo pensa se tratar do lado brincalhão de seu antigo amor. Porém, histórias que se passam em cemitérios nunca dão certo.
Será que nos conformamos mesmo com o fim de um amor? Esta é uma pergunta mágica que sempre volta à nossa mente uma vez ou outra. O que faltou? O que falhou? As pessoas quase sempre são regidas por aquele mosquitinho que diz "e se...". Mesmo as pessoas mais seguras se perguntam vez ou outra sobre amores passados. Lygia nos coloca diante de um casal normal que parece ter seguido em frente. Ele com seus negócios e seus investimentos enquanto ela se casara e até tem medo de seu marido ficar com ciúmes diante deste encontro. O que leva alguém a cometer um ato de violência contra outro? A autora vai trabalhando com os sentimentos de ambos e o leitor é capaz de intuir que alguma coisa está errada com um deles. Essa desconfiança vem de pequenos detalhes ou olhares estranhos dados durante a conversa. Esse é um daqueles contos que o leitor vai precisar ser atento e pescar pequenas pistas que a autora vai deixando ao longo da narrativa. Isso porque o ato final é tão súbito que pega o leitor de surpresa se ele não tiver percebido as migalhas de pão deixadas no caminho.
É um conto surpreendente que, assim como o anterior, é tratado com uma naturalidade assustadora e aos poucos vai se revelando obscuro. Se eu gostei da escrita da Shirley, o que dizer da brasileiríssima Lygia Fagundes Telles? Só tenho a recomendar.
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