Fabio Shiva 02/06/2024
EM UM RELACIONAMENTO ABUSIVO COM A GENIAL TRAGÉDIA PORNOGRÁFICA
Posso dizer que fui molestado por Nelson Rodrigues quando eu era criança. Mas confesso que a culpa foi inteiramente minha. Lembro que eu tinha 11 ou 12 anos quando driblei a vigilância de meus pais e fiquei acordado de madrugada para assistir escondido a “Toda Nudez Será Castigada” (https://youtu.be/brnSsD4yVG8?si=FLTdV7ABTSpc-yJv), dirigido por Arnaldo Jabor e estrelado por Darlene Glória, no Corujão da Globo. Lembro que minha mãe inadvertidamente atiçou a minha curiosidade ao comentar que Darlene Glória havia entrado para a igreja e se arrependia terrivelmente de ter feito esse filme.
Recebi bem mais do que esperava: além dos peitões da Geni, vi um traumatizante desfile de taras sórdidas, que minha educação católica logo considerou uma punição adequada para a minha luxúria infantil. Durante um bom tempo, fui dormir com medo de sonhar com o ladrão boliviano...
Aos 16 anos, já como universitário precoce, tive um segundo encontro marcante com Nelson Rodrigues, dessa vez de forma bem mais auspiciosa. Graças à feliz assinatura da Câmara de Arte, assisti muitas peças dele, em sua maioria audaciosas montagens de estudantes de teatro da UNIRIO. Fiquei apaixonado pelo “anjo pornográfico”, apelido dado a Nelson por Ruy Castro na esplêndida biografia que devorei com gosto.
Tempos depois, tive um terceiro e intenso encontro com a dramaturgia de Nelson, ao encontrar em um sebo do Pelourinho dois volumes de seu Teatro Completo, ricamente prefaciado e organizado por Sábato Magaldi. Foi um desbunde! Fiquei até meio empanzinado.
Anos se passaram, e agora tive uma nova oportunidade de mergulhar nesse sombrio pântano dramático onde brota a “flor de obsessão” (alcunha adotada pelo próprio Nelson). “Asfalto Selvagem I” tem como subtítulo: “Engraçadinha: seus amores e seus pecados dos 12 aos 18”. É o primeiro romance de Nelson Rodrigues que leio. Até então, só havia lido – e assistido – suas peças teatrais, além de alguns episódios de “A Vida Como Ela É” (https://youtu.be/dpFIHQy8RX8?si=UhFPjOhkNXcQaqwJ).
Talvez por isso só agora eu tenha percebido algo que já me parece escandalosamente óbvio. É que até então, como talvez ocorra com a maioria das pessoas, eu associava o nome de Nelson Rodrigues com doses cavalares de sexo torpe, incesto e outros tabus. E essa percepção talvez fosse o que empanava o brilho dessa luminosa descoberta que fiz agora: Nelson Rodrigues é certamente o maior autor de tragédias que o Brasil já produziu, seguindo a melhor tradição dos grandes poetas trágicos gregos: Sófocles, Ésquilo e Eurípedes.
A história de Engraçadinha caminha inexoravelmente rumo à tragédia que o leitor pressente e acompanha, como testemunha aflita e impotente, até o amargo fim. Todos os personagens da trama nos despertam aversão, mas também pena, quando conseguimos acessar em que medida são vítimas e algozes uns dos outros. E o resultado é uma leitura tensa e acossada, que afinal eclode no bem-aventurado êxtase da catarse.
Literatura de primeira grandeza, concebida e executada com a simplicidade do gênio. Bravo, querido e horripilante Nelson! Sou feliz por ter perdido com você a virgindade de minha inocência.
Encerro com algumas das provocações de Nelson nesse livro:
“O pobre para sobreviver precisa da pornografia.”
“Todo tímido é candidato a crime sexual.”
“Todos os canalhas são magros!”
“Aprendera, em vinte anos de ginecologia, que a mulher normal, equilibrada, é capaz de amar dois, três, quatro ao mesmo tempo. O amor múltiplo é uma exigência sadia de sua carne e de sua alma. A exclusividade que ela dá, e que o homem exige, representa um equívoco ou, pior: um aviltamento progressivo e fatal.”
“O Aprígio respeitava os suicidas, ou, por outra – só respeitava os suicidas. No seu exagero debochado, estava inclinado a crer que a morte natural é uma indignidade.”
“‘Não disse? Você não me ama!’ Sem desfitá-lo, acrescentou, lentamente: ‘Se me amasse, você arranjaria amantes para mim!’”
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