Gustavo Simas 16/10/2022O tédio da vida comum que sempre sonhouEliete, uma mulher de 42 anos portuguesa, sempre sonhou em ter uma vida normal: casada, com filhos, passeios no Algarve em alguns fins de semana. E, (in)felizmente, teve seu sonho realizado.
Só que o sonho realizado se revelou uma chatice.
Dulce Maria Cardoso tem uma intrigante precisão na construção da narrativa que, em muitos momentos, é quase um fluxo de consciência. Mesmo que possa incomodar um bocado, por não permitir aos leitores tomarem espaço de fabulação própria além do que a autora impõe no texto, é admirável como ela conduz o fio narrativo com fôlego.
Eliete: A Vida Normal pode ser um Madame Bovary da Era Digital. A obra é temperada de humor ("enquanto Jorge ia à caça de pokémons eu ia à caça de homens"), com atmosfera poética sem levitar muito acima do chão. Discute a promessa de felicidade e como podemos nos tornar reféns de nossos sonhos realizados.
Eliete é uma moderna madresposa (termo da antropóloga feminista Marcela Lagarde): uma figura ontológica moldada pelo patriarcado para servir como sustentáculo da estrutura familiar, mesmo à custa da felicidade. E curioso como a tentativa de deixar sua vida mais interessante e menos "normal" (com o adultério e desejos expressos nas experiências extraconjugais) acaba a levando para uma nova camada de vida normal. Talvez, hoje em dia, o extraordinário seja ter um casamento saudável, uma família feliz como em comercial de margarina, enquanto o ato de exercer adultério já é a norma.
Há potencial para pesquisa e discussões sobre relações monogâmicas, o narcisismo digital e a idealização do eu, o marketplace de pessoas gamificado que são os aplicativos de relacionamento, o consumo da utopia romântica no metaverso, nos mundos virtuais como espaços de exercício das nossas fantasias, entre outros pontos. Uma pesquisa interessante é a de Katarzyna Moszczynska-Dürst, da Universidad de Varsovia, que está disponível no link:
https://ejournals.library.vanderbilt.edu/index.php/lusohispanic/article/view/5048/2861
Nessa pesquisa há a identificação de que o livro pode estar sustentado por três esferas:
- Esfera existencial, com discussões sobre a vida, o tempo, Deus e o mundo
- Esfera tecnológica, as formas de confecção de um "eu fictício" virtual, de descobertas de novas interações e comunicação com o social afastamento do perto e aproximação do distante nas redes sociais e aplicativos de relacionamento
- Esfera da corporeidade, de como os afetos se dão pelo toque físico na recorrência de palavras como "corpo", "cabeça", "mãos", "pernas"
E essas 3 esferas são permeadas pela atmosfera da "vida normal". Numa contagem de palavras foi identificado que a palavra "avó" é a que mais aparece, com 472 ocorrências, seguida de "mamã" (315), "casa" ou "casas" (260), "homem(ns)" (148) e assim por diante.
Uma construção bonita e (creio ser) consciente da autora, que deixa polida a obra. Embora o fim seja um hiato comercial claro com gancho para continuação, dessa que é a primeira parte de uma trilogia.