A noite em que o amor morreu

A noite em que o amor morreu Taís Morais




Resenhas - A noite em que o amor morreu


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Krishnamurti 22/02/2019

A noite em que o amor morreu...
A República no Brasil tem sido uma noite repleta de pesadelos. A título de lembrança, recontemos em apenas um parágrafo, parte significativa de nosso período republicano. Não é demais. Se por um lado somos um povo muito, muito ‘cordial’, por outro, temos uma memória curtíssima. Muito bem; depois de proclamada a República, seguiu-se lá um período da República do café-com-leite, (paulistas e mineiros alternando-se na Presidência), depois a quartelada (desculpem!) Revolução de 30, depois o tal do Estado Novo (1937 a 1945). Seguiu-se breve ensaio de democracia, de 1945 a 1964 com direito a suicídio de ex-presidente (Vargas), renúncia de outro (aquele com uma cara de doidão e que tinha como jingle de sua campanha a musiquinha "Varre, varre, vassourinha...", para varrer a corrupção - Jânio Quadros), interinidade de outros ainda, e mais os governos de nada menos que 12 presidentes em situações as mais diversas possíveis.

Pronto; voamos no tempo um período de 76 anos para chegarmos afinal ao general Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967) que deu início ao regime militar brasileiro e durou de 1964 até 1985. Bem se por aqui não tivemos Bastilhas, tivemos equivalências de guilhotinas e, mais requintadas. A tortura física. Que beleza hem? Pois; é nesse ambiente e de chofre, que encontramos no Prólogo (com datação de Março de 1973), a protagonista do romance “A noite em que o amor morreu” da escritora Taís Morais. Antes de prosseguirmos, cumpre abrir um parêntesis: a autora é Jornalista e pesquisadora da Ditadura Militar brasileira. Foi inclusive premiada com um Jabuti na categoria melhor livro-reportagem de 2006. Já vem portanto, com credenciais de pesquisadora sobre o tema da Ditadura. Essa matéria tão carregada de paixões ideológicas ainda hoje. Embora o romance não seja sobre a Ditadura, a autora ambienta naquele período a difícil história de um grande amor. Neste romance – não é demais repetir – é um romance. Não se procure a História e sim o clima em que ela se desenvolveu. Neste propósito (que é o seu e não é outro), Taís Morais desvela a verdade não apenas da protagonista Angelina, mas as verdades das consciências de milhares de vozes. Ao fazermos a história não a fazemos impunemente, o legado de todas as gerações mortas nos oprime a memória como um pesadelo.

Feito o parêntesis, voltemos a nossa protagonista. Angelina é uma garota de 23 anos em 1973. Universitária, filha única de um casal da classe média de Brasília. Ela divide uma cela com uma guerrilheira chamada Maria, capturada por sua vez na região do Araguaia naquele ano. Embora Angelina fosse mais simpatizante que guerrilheira, entrou no samba de porradas, chutes, banhos gelados, tabefes, choques elétricos e pancadas a torto e direito. Escapou por pouco das sevícias sexuais muito comuns à época e perpetradas pelos fieis defensores do regime. Trecho:

“Logo os gritos de Maria recomeçaram. Angelina não conseguia pensar em nada. Apenas concentrava-se na própria respiração para controlar a dor. Os berros da colega de cárceres e de horrores a desesperava. Quanto mais ouvia as risadas dos homens, mas a esperança a abandonava. Um deles comentava que iria colocar a guerrilheira por um bom tempo com as baratas. Havia menos de cinco minutos que Angelina fora levantada no pau de arara, quando além da dor física e moral, um tremor ardido atacou seus dedos dos pés. Ela gritou tão alto e forte que sua garganta doeu.”

Mas como foi que chegamos à uma situação dessas? Lembrando aos que estão esquecidos e informando àqueles que não têm a menor ideia de como e porque uma coisa assim, realmente aconteceu. Voltemos a 1960. Jânio da Silva Quadros foi eleito presidente do Brasil, através do voto direito nas eleições presidenciais. Havia feito uma campanha eleitoral baseada na identificação com as massas. Passou a ideia de um cidadão simples (homem do povo) que tinha como objetivo moralizar o país. Governou apenas sete meses. Renunciou em 25 de agosto de 1961. Durante este breve período, tomou medidas polêmicas de pouca importância, e não conseguiu estabelecer uma relação harmônica com o Congresso Nacional. Sem um projeto eficiente para resolver os principais problemas econômicos do país, Jânio viu sua popularidade cair em função do aumento da crise econômica caracterizada pelo crescimento da dívida externa e da inflação. Buscou afastar-se das tradicionais forças políticas, pois acreditava que assim teria mais liberdade para governar. Vejam que porra! Desta forma, as negociações com o Congresso Nacional se inviabilizaram. Avancemos mais um pouquinho no que foi considerada a gota d água. Na área externa, Jânio procurou romper com a dependência dos Estados Unidos e aproximou-se dos movimentos de esquerda. Buscou reaproximar diplomaticamente o Brasil da União Soviética (então comunista), e enviou o vice-presidente, João Goulart, em missão oficial para a China (outro país comunista). E para acabar de botar fogo na zorra, condecorou Che Guevara (figurinha revolucionária comunista). Pronto. Desagradou setores conservadores da sociedade brasileira, políticos de direita e também as Forças Armadas. E afinal veio o golpe que estabeleceu um regime autoritário e nacionalista, politicamente alinhado aos Estados Unidos, e marcou o início de um período de profundas modificações na organização política do país, bem como na vida econômica e social. O regime militar estabeleceu ainda a censura à imprensa, restrição aos direitos políticos e perseguição aos opositores.

Ai está a ambiência que a geração dos anos 70 recebeu pela fuça, mal tinha saído dos cueiros. Refiro-me a jovens que de uma hora para outra viram o país se transformar em uma terra de intolerância e profundas divisões. Depois daquele início aterrador do livro da senhora Taís Morais, já em primeiro capítulo, lemos o início da narrativa em flashback a partir de Janeiro de 1968. Aí começa a história de Angelina que é considerada na primeira linha do capítulo como alguém que “sempre fora muito agitada”. Agitada e filha única de uma típica família da classe média alta de Brasília. Aos 17 anos entra na Universidade de Brasília – UnB, e acaba cursando jornalismo. Daí a participar das reuniões nos famosos diretórios acadêmicos foi um pulo. Em poucos meses passou a transpirar ideologia de esquerda. E a onda, o barato, o irado da época era meter o pau na repressão e curtir adoidado os mitos revolucionários de então que ousaram quebrar as rédeas do capitalismo. Junto a isso veio o “amor livre”, “camarada pra lá e camarada prá cá”, barzinhos, diretórios, panfletos contra o governo, e finalmente o engajamento da mocinha no Partido Comunista do Brasil (PC do B). Dir-se-ia (puta que pariu, que expressão mais antiga!), que a mocinha era uma espécie de Patricinha revolucionária que não fazia a menor ideia do que era a vida do proletariado, nem das lutas de classes, nem a duríssima vida de quem se matava diariamente para ganhar um salário de fome. Angelina tinha seu próprio carro (dado por papai lógico), freqüentava clubes de elite, e arranjou fácil fácil (influência de quem? painho), um estágio na Comunicação Social do Ministério da Justiça. Todavia, Angelina era realmente uma dessas almas puras, ingênuas, sonhadoras, a almejar sinceramente um mundo genuinamente melhor e mais justo. Verdade seja dita. Embora os pais a aconselhassem a não embarcar nessa ‘onda’, fez ouvidos moucos e enfiou o pé na jaca. Tornou-se escorregadia, dissimulada, e em surdina colaborava como podia com as atividades do PC do B em Brasília.

Positivamente o Brasil (e o mundo), vivia um período caracterizado por ataques violentos promovidos tanto pela extrema-esquerda, quanto pela extrema-direita, além de vigorosa repressão policial. Um tempo de extremismos de parte a parte. Interessante notar esse aspecto porque muita gente pensa que o regime militar foi uma coisa muito ordeira e centrada num objetivo. Não foi. O regime tinha lá sua dosagem de anárquico, ao menos nos primeiros anos. A anarquia provinha da própria instituição militar representada pelos oficiais da ativa. Nos mandatos presidenciais de Castello Branco, de1964 a 1967, Costa e Silva, de 1967 a 1969, e da junta militar (governo provisório de dois meses após problemas de saúde de Costa e Silva), a desordem e as conspirações militares desestabilizaram a máquina estatal. Reza a lenda inclusive, que o próprio Costa e Silva liderou conspirações contra o governo de seu antecessor, Castello Branco. A cada escolha de um general para ocupar a presidência, abria-se uma grave crise institucional. Interesses, interesses e interesses, a velha história.
O breve período de cinco anos que corresponde ao mandato do presidente Emílio Garrastazu Médici, de 1969 a 1974, foi o único momento em que o regime conquistou estabilidade política. Médici conseguiu apaziguar os quartéis ao permitir que as aspirações e interesses dos militares direitistas radicais, que defendiam o emprego sistemático da repressão policial-militar contra todos os opositores da ditadura, se expressassem em seu governo.
Do lado oposto a divisão também não era de pouca monta. Os grupos de oposição ao governo (ALN, PC do B, VAR-Palmares, COLINA, Ligas Camponesas, MR-8, MOLIPO, PCB) defendiam, cada qual a seu turno e tempo, várias maneiras de tentar derrubar o governo. Uns apostavam em ações urbanas como passeatas; assaltos a residências de pessoas influentes para financiar as atividades subversivas, outros seqüestravam diplomatas na esperança de chamar a atenção da população para sua causa e etc. Mas no governo Médici (1969-1974), a ditadura militar brasileira viveu o auge da repressão aos seus opositores. As forças da ordem efetuavam prisões e com as informações obtidas muitas vezes sob tortura, desarticulavam nos grandes centros as organizações de esquerda que planejavam acabar com a ditadura militar. Angelina teve vários de seus companheiros de Partido presos, espancados e assassinados friamente. Mas o que ela não contava, e o que verdadeiramente mudou os rumos de sua militância, foi o encontro com Arthur. Um belo jovem, filho de produtores rurais e de uma paciência terrível. Pimba! E foi um amor daqueles, um Deus nos acuda:
“Os dois se apertaram um contra o outro. Os beijos foram ficando mais intensos e a excitação transformou a ternura em tesão. À medida que experimentavam novos toques e lambidas. Olhavam-se com lascívia. O amor virou sexo, quente, animal e voluptuoso. Ele a deitou de costas e começou a sugar-lhe suavemente o clitóris. Ela segurou-o pelos cabelos crescidos, fazendo ele movimentar a língua mais depressa. Quase explodindo em gozo, puxou o marido pelos braços fazendo com que ele se deitasse ao seu lado.
- Vem logo para dentro de mim – ordenou Angelina.
Sentou sobre ele para que a penetração fosse delicada. Os dois gemeram quando o encaixe ficou perfeito. Ela segurava no peito de Artur e ele a levantava pelos quadris. Os movimentos sensuais tornaram-se calorosos”...

Todavia Arthur (um sujeito gostoso, mas cheio de mistérios), também não apoiava a militância, e tentou na medida do possível dissuadi-la. Sem sucesso. Angelina realmente entrara num caminho sem volta apesar da evidente impossibilidade de uma modificação no estado de coisas que o país vivia. Com o passar do tempo o movimento de oposição foi ficando cada vez mais desarticulado devido às prisões, exílios e assassinatos cometidos pelas forças governamentais – ela mesma em uma de suas prisões amargou 98 dias de reclusão. Angelina passou a viver uma situação em que tinha que esconder suas atividades partidárias da família e do próprio marido. Situação limite que acabou por fazer com ela aquilo que acontece aos que se focam por demais em uma ideia fixa e dali não se demovem. Não conseguem perceber o que acaba acontecendo bem debaixo de seu nariz. Já se escreveu muito acertadamente que a “A história humana é o resultado do conflito dos nossos ideais com as realidades, e a acomodação entre os ideais e as realidades determina a evolução peculiar de cada nação”. Assim se deu no Brasil, e Angelina não percebeu.

Ao enfocar a situação limite vivida pela protagonista, a autora acaba despertando no leitor, profundas reflexões a respeito de como nossa divisão em ideologias, via de regra, radicalmente opostas, acabam por determinar os caminhos que acabamos trilhando e que costumam levar a fragorosos desastres. Não importa o amor, não importa a família, não importa o trabalho, não importa nada. O ser se afunda num tal pensar irredutível que o cega completamente. O historiado russo R.P. Pogodin escreveu: “Cada homem age por si, segundo um plano próprio, mas o resultado é uma ação social, em que outro plano, externo a ele, se realiza; e com os fios crus, finos e desfeitos da vida de cada um, se tece a teia de pedra da história”.

Em verdade ainda não aprendemos aquilo que Gandhi pregava: “se queremos progredir, não devemos repetir a história, mas fazer uma história nova”. Isto vem aqui, a propósito do que escrevemos no início da resenha: A república no Brasil tem sido uma noite repleta de pesadelos. É o que a história nos conta em rios de tintas. Cabe ainda uma última observação: em matéria de divisão, aquela ‘galera’ dos anos 70 (os comunistas ou os patriotas, tanto faz), ficaria abismada e, de boca aberta, se visse o Brasil de 2019. Chegamos a essa altura do campeonato com 35 partidos políticos (?), e uma República transformada num imenso balcão de negócios, enquanto a nossa democracia de ‘sólidas instituições’ amarga índices de desemprego e violência social generalizada ‘nunca vistos na história desse país’ – para usar um discurso corrente. Vamos mal. Muito!
OPSSS!!! E não se pode deixar de datar isto. 23/02/2019.
Livro: “A noite em que o amor morreu”, romance de Taís Morais, Editora Penalux, Guaratinguetá - SP, 2018, 346p. ISBN 978-85-5833-446-4 - Link para compra e pronto envio: https://www.editorapenalux.com.br/loja/a-noite-em-que-o-amor-morreu
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