Erudito Principiante 26/08/2023
A história de uma mente
O que esperar de uma obra de literatura cujo subtítulo é "Um romance psicológico"? O que vem a ser um romance psicológico? Francamente eu não fazia ideia do que encontraria nesse romance tão peculiar e diferente. E foi uma surpresa mais do que grata!
O uso da psicologia em literatura ganhou maior relevância sobretudo com Dostoiévski, que nos brindou com obras magníficas como Crime e Castigo e Memórias do Subsolo onde a psiquê humana é fartamente abordada pelo gênio russo. Mas antes de Dostoiévski o alemão Karl Philipp Moritz (1756-1793) escreveu Anton Reiser: Um Romance Psicológico de uma maneira tão visceral do ponto de vista emocional que é simplesmente impossível ler e não se identificar com muitos dos pensamentos, angústias e anseios do protagonista que dá nome à obra. Em vários momentos fiquei imaginando como Moritz conseguiu transformar em palavras pensamentos tão profundos e ao mesmo tempo tão humanos.
Escrito entre 1886 e 1890 Anton Reiser trata da vida do personagem título desde a mais tenra idade até a juventude. Na apresentação da primeira parte o autor já deixa claro que não devemos "esperar uma variedade de personagens num livro que conta sobretudo a história interior do homem", ou seja, somos avisados de que a obra irá focar na construção e no desenvolvimento da personalidade de Anton Reiser bem como seus anseios, angústias, frustrações, alegrias, certezas, dúvidas, decepções, etc. A preocupação de Moritz em focar na psiquê de Reiser é tão grande que ele simplesmente omite nomes de personagens e até mesmo de lugares, utilizando apenas as iniciais dos nomes.
O jovem Anton já demonstra desde cedo uma capacidade intelectual acima da média, já projetando para si mesmo um futuro brilhante como pregador proeminente. Porém a realidade vai se mostrando muito mais dura e implacável do que ele pressupunha, fazendo malograr seus sonhos e anseios. Em seus altos e baixos Anton descobre Shakespeare, Goethe e outros grandes gênios, se encantando por eles. Os livros passam a ser seu refúgio da crueldade que é viver.
O leitor desta resenha deve estar imaginando como o autor consegue desenvolver mais de quinhentas páginas quase que exclusivamente sobre a mente de um jovem. Pois bem, lendo estes dois trechos ficará mais fácil de entender como Moritz conseguiu essa proeza:
"E o que antes pareceu ser para ele apenas meros termos vazios aos poucos se tornou conceitos claros e com conteúdo, e, quando relia ou repensava um termo e de repente tudo o que antes lhe era obscuro e confuso se tornava claro e nítido, ele era tomado por um sentimento tão agradável como jamais sentira antes - saboreava pela primeira vez o deleite do pensamento."
"Ao lançar um olhar para o todo da vida humana, ele aprendeu antes de tudo a diferenciar o que é relevante na vida do que são os seus pormenores. Tudo o que o havia magoado parecia pequeno e insignificante, não merecendo o esforço do pensamento."
Nas primeiras linhas da apresentação da primeira parte Moritz dá a entender que o romance é quase uma autobiografia ficcional: "Este romance psicológico poderia também ser eventualmente chamado de biografia, porque as observações são em grande parte tiradas da vida real". A vida do autor foi conturbada e difícil, culminando com sua morte aos 36 anos de idade em 26 de junho de 1793. Mas nem tudo em sua vida foram reveses. Ele conheceu Goethe, com quem travou amizade e se correspondia. Ele também foi professor, jornalista e crítico literário.
Esta magnífica obra, de um autor até então desconhecido para mim, me fez pensar muito sobre a vida, a existência e muitas outras coisas. Ou seja, cumpriu o papel que toda obra literária deveria cumprir, mas infelizmente uma ínfima minoria o faz.