Salomé

Salomé Oscar Wilde




Resenhas -


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MF (Blog Terminei de Ler) 05/09/2021

Uma peça curta em tamanho, mas rica em dualidades que tornam sua protagonista complexa e fascinante
Nota inicial: resenha com vários spoilers. Leia o livro antes de ler este texto.

Livro “Salomé”, peça em ato único escrita pelo escritor irlandês Oscar Wilde, originalmente publicada em 1891, em francês. A presente edição é uma tradução do inglês feita pelo poeta João do Rio. A obra é inspirada numa conhecida história extraída do Novo Testamento da Bíblia, citada nos livros de Mateus (14:1-12) e Marcos (6:14-29).

A obra se passa no palácio do tetrarca Herodes Antipas, onde ocorre uma confraternização com muitos convidados. Da família real fazem parte ainda a esposa, Herodias, e sua filha, Salomé. Em dado momento, a protagonista escuta uma voz oriunda dos esconderijos do palácio e, ao investigar, descobre que a voz é do profeta Iocanaan (João Batista), por quem se apaixona. Iocanaan resiste às suas investidas, xingando-a. Herodes Antipas queria muito ver Salomé apresentando sua conhecida “dança dos sete véus” mas, em troca, ela exige do tetrarca um juramento, de que ele lhe dará qualquer coisa que ela pedir pela apresentação. Ao término, ela exige a entrega da cabeça de Iocanaan.

Wilde utiliza o texto bíblico como uma premissa, visto que o material fonte carece de maiores detalhes e profundidade (uma característica, aliás, presente em toda a Bíblia). O autor atribui ambientação, personalidade e liberdades criativas que enriquecem a história, dando-lhe camadas mas, principalmente, trabalhando com dualidades.

PAGANISMO X CRISTIANISMO

A primeira dualidade que salta aos olhos na narrativa é o Paganismo x Cristianismo. Logo em seus primeiros diálogos, vemos um sírio e um pajem, dois entre vários convivas, conversando sobre a beleza de Salomé e da lua.


O SÍRIO: Como é bela assim, à noite, a princesa Salomé!

O PAJÉM DE HERÓDIAS: Olha para a lua, homem! Vê como está estranha! Parece uma mulher erguendo-se do túmulo, uma mulher morta; é como se toda ela se voltasse para a contemplação das coisas mortas.

O SÍRIO: A lua tem um estranho olhar. É tal qual a pequena princesa, que traz um véu amarelo e cujos pés são de prata; é tal qual a princesa, cujos pés parecem duas pombas brancas. [Parece estar dançando.]

O PAJÉM DE HERÓDIAS: A lua parece uma mulher morta. Move-se tão vagarosamente…


A lua é uma personagem freqüente em cultos pagãos antigos. Ao estabelecer semelhanças entre a protagonista e o astro, Wilde, de certa forma, oferece um contraponto quando, posteriormente, Salomé buscará a aceitação do cristão Iocanaan. Esse primeiro diálogo também fará uma conexão visual com a última cena de Salomé do livro, quando seu destino é selado.

BELEZA DESCRITA X BELEZA SUGERIDA

Uma segunda dualidade está na definição de beleza. Seria a beleza perfeita, por assim dizer, visual ou sugerida? Em diálogos que ocorrem ainda no início do livro, vemos outros coadjuvantes conversando, acentuando a primeira dualidade, igualmente, abordando essa questão da perfeição.


PRIMEIRO SOLDADO: Os judeus adoram um Deus que [não se pode] ver.

O CAPADÓCIO: É lá possível compreender um Deus assim?


Deus seria a perfeição em si… e o deus judeu é invisível. Sua perfeição não é explícita; é sugerida. Da mesma forma, por mais que saibamos, durante a leitura, que Salomé é dotada de beleza impressionante, isso não é descrito textualmente por Wilde. A perfeição visual de Salomé vem do que outros personagens dizem e admiram, mas tudo fica nas entrelinhas. Tal como a perfeição divina, a perfeição da protagonista depende da imaginação do leitor.

INGENUIDADE (A VIRGEM) X MALÍCIA (A FEMME FATALE)

Salomé se desloca para a área externa do palácio, incomodada com os olhares lascivos de Herodes Antipas. Os olhares são incompreensíveis (ingenuidade) para ela, mas ela acha que os entende, ou que aprendeu sobre eles (malícia).


SALOMÉ: Não ficarei; não posso ficar. Por que me olha o Tetrarca com aquele olhar vermelho sob as sobrancelhas convulsas? É estranho que o marido de minha mãe leve o olhar assim para mim… Não sei o que pensar. [Na verdade, bem sei.]


Salomé é virgem. A virgindade feminina, vista nos tempos antigos como um atributo cantado por poetas, aqui igualmente é citada, mas logo é ofuscada pelo hedonismo, num primeiro momento presente nos olhares dos convivas, e depois exposto no próprio comportamento de Salomé.

Ao conduzir o ato da dança como condicionante para obter o que deseja, posteriormente no texto, Salomé denota um poder de manipulação incompatível com a visão virginal ingênua. Assume aqui a mulher fatal (femme fatale), a mulher poderosa. Salomé sabe de sua sensualidade e de sua capacidade de seduzir e, como dona de si, a utiliza para obter o que deseja.

SÚPLICAS X IMPERATIVOS / SALOMÉ X CARMEN / FEMININO X MASCULINO

Salomé se apaixona por Iocanaan. Primeiro, por sua voz; depois pelo seu corpo. Salomé suplica pelo amor de Iocanaan, que a repele. A recusa conduz à uma transformação de sentimentos. A adoração desesperada cede espaço para a vingança cruel.

É interessante observar como Salomé possui uma abordagem mais “masculina” no ato da sedução. Sua ação diante de Iocanaan é direta, objetiva. Ela o deseja, um desejo físico que, diante da recusa, desperta o amor obsessivo.

É igualmente interessante traçar um paralelo com outra obra, “Carmen”, novela de Prosper Mérimée, escrita originalmente em 1845. Teria Wilde lido essa obra? Aqui temos uma mulher também sedutora, que desperta uma paixão avassaladora em um militar (Dom José), que acaba caindo em desgraça e que, possuído por um ciúme doentio, diante da indiferença de Carmen, define o destino da amada. Aqui novamente temos o amor da posse, que não aceita a recusa. Temos, como citado, uma personagem feminina forte, que sabe de seu poder. A diferença está forma como tais contextos se comportam. No texto de Wilde, a sedução de Salomé, ao contrário de Carmen, é infrutífera, assim como suas súplicas apaixonadas. É como se Salomé assumisse o papel de Dom José, inclusive na forma como a rejeição desperta nela (e em Dom José) sentimentos tão condenáveis.

Observem que Iocanaan se comporta como a figura literária da virgem, que foge das investidas amorosas da sedutora. Iocanaan assume a figura clássica do feminino, enquanto Salomé assume o imperativo masculino, baseado na posse e no poder (aqui, não físico, mas baseado na articulação meticulosa).

A indiferença do profeta faz com as que as súplicas se convertam numa ordem imperativa de Salomé, que se repete ininterruptamente até que seu desejo é atendido.


SALOMÉ: Dá-me a cabeça de Iocanaan.


Por fim, vale a pena observar que, sendo virgem e impossibilitada de ter a posse física de Iocanaan, pelo assassinato do profeta, Salomé busca a posse literal do corpo: segurando a cabeça decepada de Iocanaan, ela o beija de forma violenta, lasciva, sendo essa a única união carnal possível no contexto.

AS ANÁLISES EM SALOMÉ / CONCLUSÃO

Ainda que o paralelo com Carmen seja meu, é preciso dar os devidos créditos para as análises que, na presente edição, são oriundas de Maria Rita Kehl, que assina o posfácio, reunindo algumas dessas interpretações surgidas desde a concepção da obra por Wilde, bem como outras de sua autoria. Maria ainda descreve uma interessante análise da protagonista sob o prisma da Psicanálise.

Wilde nos brinda com todas essas dualidades que, a meu ver, dizem muito sobre o autor, que teve uma trajetória de vida complexa, agitada, contraditória. Falei um pouco disso em minha resenha dos “Aforismos” escritos por ele.

Mesmo sendo uma obra curta em tamanho, o trabalho esmerado na construção de uma personagem protagonista complexa, agigantam o resultado final. Acrescente a isso um texto poético, ricamente bem escrito, e o resultado indiscutível é uma das peças mais interessantes da história da Literatura.

Visite o blog para ver essa e outras resenhas: https://mftermineideler.wordpress.com/
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