João 14/11/2020
Histórias e sonhos - Lima Barreto.
Penso que as letras alcançam a sua máxima expressão quando, a um só tempo, atendem à sua função social, apontando criticamente os problemas políticos e cultuais de nosso tempo, sem deixar de insinuar-se sobre a intimidade da natureza humana dando o necessário colorido ao mistério existencial que nos cerca. E em se tratando de literatura, isso tudo só pode ser vazado em termos criativos, imaginativos, calcados no fio narrativo, a exigir do autor verve ficcional.
Lima Barreto é um escritor que produz essa literatura emancipadora, crítica, profunda e criativa.
Evidentemente alguns aspectos estão mais realçados que outros em seus escritos. O viés autobiográfico, marcado pela mágoa e pelo protesto; a atitude satírica e debochada com que o escritor carioca aponta os desmandos da primeira República e os descaminhos da sociedade brasileira; o caráter combativo e militante com que Lima Barreto desconstrói certas práticas culturais e políticas do seu tempo; todas essas são marcas indeléveis nos textos que compões toda a obra do autor.
Lima Barreto pode não ser um perfeito ficcionista. Mas daí a dizer que o caráter combativo e autobiográfico de seus textos prejudica a sua produção literária existe um grande caminho.
A diversidade dos temas que servem de motes para as narrativas, todos explorados a partir de um conhecimento enciclopédico da história, da sociologia e das artes, revela um autor cuja capacidade criativa é inesgotável, e não limitada à monotonia da crítica social.
No que interessa às “Historias e sonhos”, têm-se pequenas narrativas bastantes ecléticas na sua forma e no seu conteúdo. Em sua maior parte são contos. E nesse ponto se destacam os “contos argelinos”, por meio dos quais Lima Barreto ilustra a República brasileira e seus “podres” através de alegorias fundadas em cenários exóticos (argelinos) com seus personagens estrangeiros (“Harakashy e as Escolas de Java”; “Hussein Bem-Áli Al-Bálec e Miqueias Habacuc”). Nesse último conto, o autor parece desferir uma crítica ácida contra as políticas de valorização forçada do café empreendidas pela República em favor dos cafeicultores paulistas.
Outros contos possuem um misto de doçura, beleza e melancolia que são relativamente raros em Lima Barreto, dado o seu viés marcadamente satírico e debochado. São exemplos desses contos “O moleque”, que emociona pela vida dura do menino pobre e negro que fica exultante ao ganhar uma fantasia de diabinho no carnaval, com a qual irá pregar sua ingênua vingança contra os garotos brancos do bairro.
Há também duas pequenas peças de teatro, destacando-se “Os Negros” pela capacidade descritiva do cenário que é de encher os olhos, da magia que envolve os diálogos e do comovente destino dos negros fugitivos.
Alguns contos chamam a atenção pelos seus começos despretensiosos, que caminham longamente pelo cenário natural que caracteriza os subúrbios do Rio de Janeiro (inclusive, é caro à pena do autor a gente e as cenas dos arrabaldes cariocas), sem destino certo, mas enlevados pela exuberância das paisagens, pelo provincianismo local e pelos fatos históricos a elas atrelados (ex: “O Moleque” e “Mágoa que rala”).
Nessa coletânea estão presentes versões resumidas dos romances “Clara dos Anjos” e Numa e a Ninfa’. Também são encontrados textos curtos, que flertam mais com o formato da crônica, pelo viés datado e jornalístico, do que propriamente o do conto.
Lima Barreto não merece ser reduzido à pecha de escritor meramente combativo e militante. Tampouco como um escritor simplesmente ressentido que dá vazão às suas mágoas por meio de escritos autobiográficos. O todo de sua obra revela a riqueza, as sutilezas e a erudição de um escritor cuja expressão literária é mais ampla e profunda do que a crítica brasileira insinuava.
Por vezes temos um escritor magoado e arruinado espiritualmente, como nas palavras de um seu personagem: “Eu queria mostrar a todos que fui traído; que me prometeram muito e nada me deram; que tudo isso é vão e sem sentido, estando no fundo dessas coisas pomposas, arte, ciência, religião, a impotência de todos nós diante do augusto mistério do mundo. Nada disso nos dá sentido do nosso destino; nada disto nos dá uma regra exata de conduta, não nos leva à felicidade, nem tira as coisas hediondas da sociedade”.
E por outras, revela-se esperançoso: “No mundo, não há certezas, nem mesmo em geometria; e, se alguma há, é aquela que está nos Evangelhos: amai-vos uns aos outros”.
Boas leituras!