bobbie 19/08/2020
A construção do Eu gay desde...?
Lembro-me de, há mais de vinte anos, quando estava no primeiro semestre do meu curso de Letras, estudando Psicologia da Educação, ficar fascinado sobre as teorias freudianas sobre o desenvolvimento psicossocial dos bebês. A primeira fase - a oral - que é a que acontece logo que todos nascemos, é quando a criança conhece o mundo e desenvolve seu senso de reconhecimento e prazer pela boca. Repare: o primeiro instinto de um recém-nascido, a primeira coisa que ele sabe fazer, ainda que não saiba como ou por que sabe, é buscar o bico do peito da mãe: dali ele tira seu primeiro sustento, e obtém do ato imenso prazer. Dê a um bebê qualquer objeto e ele o levará à boca, pois é assim que experimenta e começa a reconhecer o mundo. Sequer dê objeto algum, e ele/a simplesmente levará as mãos ou até os pés à boca. Com o passar dos meses, a segunda etapa que se inicia é a fase anal: a produção de seus excrementos anais torna-se fonte de prazer para a criança, e aí residiu o meu elemento de maior surpresa. Não me lembro do nome da professora, ainda que me lembre de seu nome, mas jamais esquecerei o que ela disse: "quando forem pais, nunca façam cara feia para o cocô do bebê de vocês. Recebam-no com alegria, com sorrisos, ou mesmo com elogios". Para a criança, explicou a professora, as fezes representam o primeiro presente, de produção própria, que o bebê oferece aos pais, e rejeitá-la com cara de nojo ou recriminação pode fazer que com, subconscientemente, aquele bebê cresça para se tornar um adulto que acredita que nada do que faça tem valor. O que te pertence me fez lembrar dessas aulas: ao longo de toda a narrativa do protagonista sem nome (talvez para facilitar a identificação de um número infinito de gays rejeitados), percebemos um homem gay que sente que comete erros, que praticamente baixa a cabeça para humilhações e indignidades e que, por que não dizer, acredita, ainda que em nível inconsciente, que não merece ser amado e que deve ser punido ou castigado pela sua forma - diferente - de amar: um homem que ama outros homens. Desde a primeira cena, quando conhecemos o professor norte-americano que dá aulas numa escola conceituada na Bulgária, e que busca prazer com outros homens em sórdidos banheiros públicos, ficam claros dois problemas recorrentes da comunidade gay: o "prazo de validade" expirado, cruelmente atribuído aos homens gays que não têm mais vinte anos (ainda que o protagonista nem seja, de fato, velho) e, talvez, mais importante do que isso, a crença arraigada no subconsciente de que ele só encontrará satisfação de seus desejos pagando por isso, em rondas intermináveis por banheiros imundos, desertos e arriscados, pois o afeto gay é, como aquele banheiro, uma imundície. Logo na primeira cena, o protagonista conhece Mitko, um jovem e problemático michê com quem ele irá desenvolver um relacionamento de codependência. Ao longo da trama, vamos conhecendo mais tanto o protagonista (ele próprio o narrador), como Mitko, ambos produtos da marginalização social da homossexualidade. Tal relacionamento está fadado ao fracasso (se é que algum outro relacionamento desses dois poderá ter sucesso), pois, como vemos, o protagonista teve suas fezes recusadas pelo pai (metaforicamente falando, ok?), quando foi rejeitado e escorraçado quando o homem descobriu aquilo que o filho estava aprendendo de mais belo e puro em si: o amor. A única diferença entre o protagonista e Mitko, provavelmente, é a chance que a vida dá a um, mas nega ao outro. Em termos literários, o romance é muito bem escrito, pendendo para a técnica do fluxo de consciência, desenvolvida no começo do século XX, com adeptos tais quais Virginia Woolf. Aqui a técnica não chega a ser intrincada demais, e o romance flui com facilidade. A linguagem é crua: há aqui desde "seu pau grosso e comprido", passando por "ele sacudiu o pau pra mim" e "esfregou seu pau duro em mim". Nada que comprometa o poder lírico deste belo livro. O final... Bem, não esperem o bom e velho "e eles viveram felizes para sempre", mas um amargor e uma angústia típica de só quem sabe a dor e as delícias de ser quem se é.