Larissagris 14/07/2023A MULHER COM OLHOS DE FOGO (NAWAL EL SAADAWI)Uma pessoa que foi privada da capacidade de confiar vive à margem da sociedade; ela é só a sombra de um ser humano. Tal pessoa vive por instinto, e suas avaliações e considerações não vão além da necessidade imediata de sobrevivência. (Pág. 6)
- Assassina ou não, ela é uma mulher inocente e não merece ser enforcada. Eles sim é que deveriam ser enforcados. (Pág. 21)
Não havia nada no meu passado nem na minha infância que fosse digno de ser lembrado, nem amor ou coisa parecida no presente. Tudo o que eu tinha a dizer, portanto, só poderia estar ligado ao futuro. Porque o futuro ainda pertencia a mim e eu poderia pintá-lo nas cores que desejasse. Ainda pertencia a mim para que eu decidisse livremente como seria, e para operar mudanças como bem entendesse. (Pág. 49)
Eu respondi que meu tio era um xeique respeitado, bem versado nos ensinamentos da religião, e que, portanto, não era possível que ele tivesse o hábito de bater na sua mulher. Ele retrucou que era justamente os homens versados na sua religião que batiam nas esposas. Os preceitos da religião permitiam tal punição. Uma mulher virtuosa não devia se queixar do marido. O dever dela era a perfeita obediência. (Pág. 75)
- A morte chega para todos, Firdaus. Eu vou morrer, e você também. O que importa é como se leva a vida até o momento da morte. (Pág. 88)
- Você deve ser mais dura que a vida, Firdaus. A vida é muito dura. As únicas pessoas que realmente vivem são as que conseguem ser mais duras que a vida. (Pág. 88)
[...] A vida é uma cobra. É a mais pura verdade, Firdaus. Se a cobra perceber que você não é uma cobra, vai morder você. E se a vida perceber que você não tem veneno, vai devorar você. (Pág. 88)
Um homem não conhece o valor de uma mulher, Firdaus. A mulher é a única que determina seu próprio valor. Você decide o quanto vale, e quanto mais alto for esse valor, esse preço, mais os homens entenderão que você é realmente preciosa, e concordarão em usar os recursos que possuem para pagarem o que você vale. E se o homem não tiver esses recursos, esses meios, ele irá roubar de alguém para dar o que você exige. (Pág. 89)
- Sentimentos não vão lhe trazer nada a não ser dor. (Pág. 91)
Uma frase, uma pequena frase composta de quatro palavras, lançou uma intensa luz sobre a minha vida inteira e me fez enxergar como ela era realmente. O véu que cobria os meus olhos havia sido despedaçado. Eu estava abrindo os meus olhos pela primeira vez, vendo a minha vida sob uma nova perspectiva. Eu não era uma mulher digna de respeito. Era uma informação da qual eu não tinha tomado conhecimento antes. Foi bom ter ignorado esse fato por tanto tempo. (Pág. 113)
Eu acabei percebendo que uma mulher trabalhadora tem mais medo de perder o emprego do que uma prostituta tem de perder a vida. Uma funcionária morre de medo de perder o emprego e ter que virar uma prostituta, porque não entende que a vida de uma prostituta é na verdade melhor que a dela. E assim, com sua vida, sua saúde, seu corpo e sua mente ela paga o preço por seus medos ilusórios. Ela paga um preço altíssimo para receber coisas de valor irrisório. (Pág. 118)
Todas as mulheres são vítimas de embuste. Os homens enganam as mulheres e as punem por terem sido enganadas, forçam-nas a se degradar e as punem por chegarem tão baixo, prendem-nas ao casamento e então as castigam por toda a vida com serviços humilhantes, insultos e surras. Agora eu percebia que, de todas as mulheres, as prostitutas eram as menos iludidas. Que o casamento era um sistema que representava o mais cruel sofrimento para mulheres. (Pág. 132)
Eu era como uma mulher caminhando num mundo encantado ao qual ela não pertencia. Ela é livre para fazer o que quer, e livre para não fazer. Ela vive o raro prazer de não ter compromisso com ninguém, de ter rompido com tudo, de ter cortado todas as relações com o mundo em torno dela, de ser completamente independente e de viver a sua independência completamente, de desfrutar da liberdade de não se sujeitar a um homem, a um casamento ou ao amor; de ter se divorciado de todas as limitações fundamentadas em regras e leis, no tempo, ou no universo. Se o primeiro homem que aparecer não a quiser, ela sabe que outro virá, ou outro depois desse. Não precisa ficar esperando por um homem apenas. Não precisa ficar infeliz quando ele não aparece, nem alimentar expectativas e então sofrer quando essas expectativas caem por terra. Ela não espera mais por nada, nem deseja mais nada. Ela não teme mais coisa nenhuma, porque tudo o que poderia feri-la já a feriu. (Pág. 133)
Homens revolucionários dotados de princípios não eram realmente diferentes do resto dos homens. Eles usavam sua perspicácia para obter, em troca de princípios, o que outros homens compravam com o seu dinheiro. A revolução para eles é como o sexo para nós. É algo para ser usado. Algo para ser vendido. (Pág. 134)
Continuei a olhá-lo direto nos olhos, sem piscar. Eu sabia que o odiava como só uma mulher pode odiar um homem, como só um escravo pode odiar o seu senhor. Pela expressão nos olhos dele, vi que ele me temia como só um senhor por temer o seu escravo, como só um homem pode temer uma mulher. (Pág. 143)
Uma pergunta passou pela minha cabeça: por que motivo eu nunca havia esfaqueado um homem antes? Eu percebi que sentia medo, e que o medo me acompanhava todo o tempo, até o breve momento em que eu vi o medo nos olhos dele. (Pág. 144)
- Minha mãe não é uma criminosa. Nenhuma mulher pode ser criminosa. Para ser um criminoso é preciso ser um homem. (Pág. 150)
- Você é uma mulher violenta e perigosa.
- Eu estou falando a verdade. E a verdade é violenta e perigosa. (Pág. 150)
Eu fui a única mulher que arrancou a máscara, e eu expus a face da feia realidade deles. Eles me condenaram à morte não porque matei um homem - milhares de pessoas são mortas todos os dias -, mas porque eles têm medo de me deixar viver. (Pág. 150)
Porque durante a vida o que nos escraviza são nossos desejos, nossas esperanças, nossos medos. A liberdade da qual eu desfruto enche-os de ódio. Eles adorariam descobrir que existe, afinal de contas, alguma coisa que eu deseje, ou que eu tema, ou que eu espere. Assim eles saberiam como me escravizar mais uma vez. (Pág. 151)
- Todos vão morrer um dia. Eu prefiro morrer por um crime que eu cometi do que morrer por um dos crimes que vocês cometeram. (Pág. 151)