Gabriel 25/05/2022
Economia doméstica do fim do mundo
O passado do universo de Oryx e Crake é constrangedoramente semelhante ao nosso futuro. Corporações são estados-nações e fazem sua vontade soberana, procedimentos estéticos desumanizantes sendo cobiçados como requintes sexuais e qualquer tentativa holística de escapar dessa realidade não passa de mero reforço dessa condição, podendo parcelar em várias vezes. Mas tudo isso o leitor já sabe, dado que este é o terceiro livro da série. Portanto, o que nos convida a leitura é menos os porquês e mais o adiante, narrando imediatamente após o conflito que encerrou o segundo livro onde o grupo de Toby - a única narradora dos últimos livros que preserva seu posto e relevância - conseguiu imobilizar um grupo de ex-painballers, uma espécie de jogo de sobrevivência para entreter o público e tornar criminosos violentos em criaturas ainda mais monstruosas e psicopatas.
Os homens são liberados pelo descuido dos Crakers, humanoides artificiais de pele colorida e intocados por qualquer senso de malícia, causando assim o conflito central do terceiro livro. Enquanto essa insegurança suspensa no ar de que os painballers podem atacar o acampamento – e, tecnicamente, novo epicentro da humanidade, da mistura que surgiu entre os Jardineiros e os Cientistas sequestrados por Crake -, o Homem das Neves segue convalescente, portanto a obrigação de tecer histórias para os Crakers fica a cargo de Toby, a contragosto.
Novamente, a trama discorre por duas linhas do tempo distintas, acompanhando a tensão e os desafios daquela vida comunitária nas ruínas do mundo, onde as raízes das árvores rapidamente já rompem o asfalto e quimeras animalescas podem atacar de qualquer direção e em qualquer formato, e passeando pela fantasia que Toby elabora para os Crakers com os relatos que ela mesma vai recebendo de Zeb. O que era o personagem mais interessante do segundo livro causa uma sensação conflituosa nesse. Zeb é um homem rancoroso, magoado e grosseiro que tenta verter toda gentileza que conhece para Toby enquanto ambos engajam num relacionamento. Sua história nos concede uma nova perspectiva das dinâmicas sociais e morais que coordenavam a sociedade antes de sua aniquilação, mostrando, sem maneirar no pessimismo, um passeio por inúmeras locações onde é impossível encontrar empatia, carinho humano ou alívio. Mesmo as relações que se estabelecem entre personagens são repletas de mentira, aflição e desconforto. É como se o próprio indivíduo mundano já tivesse se misturado de modo indissociável dos dejetos que produz e não fosse mais uma saída viável para o desgosto de viver em comunidade.
O único respiro de afeto que Zeb temem sua jornada é através de seu irmão mais velho e [*****]mplice, Adão. Ambos eram herdeiros de uma fraude religiosa que escolheu o óleo como objeto de veneração e, portanto, tinham de se esconder permanentemente do faro do pai, um empreendedor da fé alheia.
Apesar de o livro expandir ainda mais o mundo iniciado em Oryx e Crake, sua construção tem certos tropeços e pendências pouco harmoniosas com o que vinha sendo construído. Jimmy e Ren, outros narradores, são menos que coadjuvantes aqui. O principal obstáculo dos personagens no presente é renegado às últimas páginas e com pouca construção ou recompensa, enquanto a história do passado ocupa tempo demais sem exercer muita importância no subtexto, estando ali mais para preencher lacunas dispersas – que não precisavam necessariamente de resposta – do que coincidir com o que está sendo dito no livro.
O histórico de Zeb importa porque acompanhamos a história através de Toby, que está apaixonada por ele, mas mesmo esse romance não parece ser conforto para ninguém ali. Imediatamente depois de conquistar seu interesse amoroso, Toby passa muitas páginas apenas refletindo sobre como outra das mulheres do acampamento, Fox, é fútil, ardilosa e vulgar. Sua insegurança toma conta e ela gasta um bom tempo sendo remoída pelo medo de Zeb traí-la com esta mulher tão sexual e imprópria. O livro tem umas percepções tão repentinamente misóginas de como se narrar mulheres que é estranho mesmo se o leitor apenas estiver convencido que essa é a perspectiva única e fragilizada da narradora, porque não parece que Toby seria assim. Contradições são bem-vindas em personagens, mas a falta de controle sobre as nuances desse dilema torna boa parte de Maddadão a leitura com menos consistência dos três livros, talvez uma delação do próprio esgotamento dessa história, ainda que consiga produzir poucos momentos de genuína sensibilidade humana entre seres improváveis – humanos e quase – incumbidos do futuro da espécie.