Érika 30/12/2019George Eliot e o livro-desabafoA última das minhas leituras pendentes de resenha desse ano era “O moinho à beira do Rio Floss”, da Mary Ann Evans, mais conhecida pelo pseudônimo masculino de George Eliot, que ela adotou para separar sua escrita do grande escândalo de sua vida privada.
Mary Ann era extremamente culta, estudava filosofia e outras disciplinas à época tidas como masculinas, e lia em diversos idiomas.
Sua erudição transparece neste livro, cujos títulos estão repletos de referências, inclusive muitas bíblicas e religiosas, remetendo à educação protestante da autora, que de certa forma a acompanhou até o fim da vida. O tédio que poderia advir da exposição dessa erudição fica afastado pelo dinamismo dos diálogos. Eles são profundos nas ideias que tratam, vivazes na exposição de personalidade, usando a autora de todos os recursos, até mesmo a simulação do modo de falar dos personagens, para mostrar cada um em todas as suas cores.
O livro conta a história de Maggie Tulliver, uma menina do campo, filha do dono do Moinho Dorlcote, cuja mãe pertence a uma família burguesa tradicional da região, os Dodson. Maggie é inteligente, sonhadora e geniosa, e fisicamente mais parecida com a família do seu pai — morena e trigueira, enquanto seu irmão mais velho, loiro, gorducho e de olhos azuis, puxou os Dodson em ambos os quesitos.
Essa disparidade a coloca, desde cedo, na mira das críticas das tias Dodson. Incapaz de agradá-las, a menina recorre a atos de protesto inconsequentes e radicais, como cortar o próprio cabelo — constante alvo de críticas — e fugir para se juntar aos ciganos.
Com o irmão mais velho, Maggie também tem uma relação agridoce. Eles se gostam muito, mas o menino tem uma noção de justiça particular, e volta e meia pune a irmã quando ela faz algo que não lhe agrada. Somente no pai Maggie encontra um amor incondicional, que a aprecia por quem ela é.
O pai de Maggie, porém, tem outros problemas, notadamente, uma teimosia sem limites. Ele se envolve em uma batalha judicial contra uma obra que estão construindo à margem do Rio Floss e pode prejudicar a correnteza que move seu moinho. Nessa batalha, ele acabará perdendo tudo o que tem — um dos eixos do drama do livro.
Antes disso, porém, ainda vivendo em prosperidade, o Sr. Tulliver resolve mandar seu filho Tom estudar com um professor particular. Tom tem muita dificuldade nos estudos, ao contrário de seu colega de aula, Philip Wakem, que por acaso é filho do advogado do oponente judicial do Sr. Tulliver. Os dois meninos aprendem a se tolerar, apesar de estarem sempre à beira do conflito, porque são muito diferentes. Enquanto Tom é um menino ativo, com pouca paciência para atividades intelectuais, Philip é esperto, gosta de leitura, pintura e música, e talvez gostasse de ser ativo, mas sua condição não lhe permite. Ele é fisicamente debilitado, corcunda.
A personalidade do filho de Wakem é muito mais compatível com a de Maggie que com a de Tom, e quando a menina vem visitar o irmão, ela não demora a fazer amizade com Philip. Ela adora as histórias que ele conta, e ouvi-lo cantar, observar seus desenhos. Finda a sua estadia, porém, a menina não torna a vê-lo por muitos anos, e quando finalmente se reencontram, as circunstâncias estão bastante alteradas.
Inicialmente, mandam Maggie para um internato também. Depois de um tempo, porém, ela e Tom são chamados de volta para casa. Em casa eles encontram o pai em um estado precário de nervos, e a mãe chorando por seu enxoval de linho vendido. Seu pai perdera a batalha judicial, fora à falência e não tinha mais como sustentar os estudos dos filhos. A propriedade e toda a mobília vão a leilão.
A família ainda tenta salvar a propriedade. O Sr. Tulliver pede à empresa do concunhado que adquira o moinho no leilão, e o deixe como administrador. O advogado Wakem, porém, que tem o direito de preferência para arrematar o moinho, compra-o antes da firma, levando o velho Tulliver a ter um colapso.
A Sra. Tulliver então vai ao encontro de Wakem e consegue que ele não despeje o Sr. Tulliver do moinho. Em vez disso, surge a proposta de que Tulliver trabalhe para ele como administrador. O homem, alquebrado, aceita, mas amaldiçoa todas as gerações do advogado e quem quer que, na sua própria família, venha a se relacionar com ele.
É no meio dessa confusão que Philip e Maggie reatam a amizade. Para enfrentar a adversidade, ela vinha buscando forças nos escritos religiosos ascéticos de Thomas de Kempis. Philip traz um pouco de cor para a vida da menina, emprestando-lhe livros e acompanhando-a em longos passeios regados a longas conversas. Ele está apaixonado por Maggie e se declara. Ela diz ser recíproco, embora transpareça certa relutância. Não há muito tempo para a relação se desenvolver, porém, porque Tom os pega juntos, e ameaça de contar tudo ao pai, a menos que Maggie se comprometa a não ver mais Philip.
Alguns anos se passam, o Sr. Tulliver vai trabalhando e Tom também arranja um emprego, a família vai vivendo com o mínimo e juntando o máximo possível para pagar as dívidas do patriarca com os credores. Arriscando-se um pouco, Tom faz alguns investimentos, com o que consegue juntar a soma necessária muito antes do previsto. Assim que limpa seu nome, o Sr. Tulliver comete uma loucura, chicoteia seu inimigo e falece pouco tempo depois.
Tom vira o chefe da casa. Com o trabalho duro, granjeia o respeito da difícil família da mãe e vai juntando dinheiro para comprar de volta o moinho. É nesse momento que outros personagens entram na história, mais precisamente, Stephen, o noivo da prima de Maggie, Lucy, em cuja casa ela viera passar algum tempo.
O rapaz, um moço bonito e rico da cidade, herdeiro da firma onde Tom trabalha, logo cai de amores por Maggie, que cresceu para superar em beleza sua loura e delicada prima. Maggie também se sente atraída por Stephen, uma atração que é essencialmente física, já que eles nem têm muita chance de conversar. Ambos lutam contra a paixão, por não quererem ferir os sentimentos de Lucy. Para piorar, o rapaz é um grande amigo de Philip, que também frequenta a casa. Quando descobre sobre o passado entre Philip e Maggie, Lucy tenta dar um jeito de remover os obstáculos para eles ficarem juntos. Puxa algumas cordas e consegue que o Sr. Wakem se decida a vender o moinho de volta para Tom, na esperança de que isso apazigue o conflito entre as famílias. O advogado até consegue aceitar que seu filho se case com a Miss Tulliver — mas tal casamento não está destinado a se realizar.
Em um momento de pouca vigilância, pegando-se sozinhos e desassistidos, Maggie e Stephen fogem juntos de barco. Ele a convence e ela vai, como que em um transe. No meio do caminho, porém, a consciência pesa, ela pensa em todas as pessoas que ama e que está desapontando, e volta.
Sua moral, porém, já está destruída, mesmo a moça sendo inocente das infrações morais que lhe imputam. Ocorre que algum conhecido a vira no convés do barco com o noivo da prima no dia anterior. E o falatório começa, com as mulheres destruindo a reputação de Maggie, apesar da defesa que lhe fazem o vigário e, para grande surpresa do leitor, a mais severa e cricri de suas tias, a Sra. Glegg.
Tom, porém, novamente não demonstra misericórdia. Ele bane sua irmã infratora de casa. Ela acaba alugando um quartinho na casa de um antigo amigo de Tom, Bob, e depois a Sra. Tulliver se junta à filha. Maggie passa seus dias reclusa, recebe o perdão da prima e de Philip, e rejeita com dor as novas investidas epistolares do pretendente que a arruinou. Tudo isso até o dia em que uma chuva gigante causa a enchente do Rio Floss. A casa de seu senhorio, que fica perto do rio, começa a encher. Grande parte do povoado enche também, e da mesma forma o moinho, onde Tom agora vive só. Maggie sai de barco atrás dele. Encontra-o em casa, ilhado, e eles ainda têm tempo de se reconciliar antes que o livro acabe em uma nota triste.
Não é incomum que escritores usem a própria vida de inspiração para suas obras, retratando nelas relações e acontecimentos reais de forma direta ou alegórica. Em O moinho à beira do Rio Floss testemunhamos esse fenômeno mais uma vez.
Dentre as muitas facetas do livro, destaca-se a autobiográfica. A protagonista Maggie guarda muitas semelhanças com sua autora, dentre elas a inteligência e a sede por conhecimento, mas também o fato de ser considerada feia na infância. A personagem supera essa fase, tornando-se uma mulher muito atraente, sorte da qual a autora não compartilhou. Infelizmente, sua genialidade foi eclipsada aos olhos de muitos contemporâneos — e até comentaristas posteriores — por suas feições desprovidas de uma beleza convencional.
O autorretrato delineado em Maggie, porém, é apenas parte da figura central que Eliot estava a pintar, a saber, sua relação complicada com o irmão mais velho. Ela é o laço que une todas as tramas do livro. Desde a Parte 1, que não à toa se chama “Menino e menina”, até a última linha do último capítulo, tudo gira em torno de Maggie e Tom. A menina adora o irmão de um modo tão apaixonado que é difícil não se zangar com tom ao ver a quase frieza com que ele responde ao afeto dela, e a facilidade que tem de cortar os laços sempre que ela não se comporta do modo esperado por ele. Seus valores e personalidades são muito diferentes, e essa discrepância só vai se agravando ao longo dos anos e fazendo com que seja mais difícil para os dois se compreenderem e conviver pacificamente, até que as respectivas atitudes redundem no rompimento.
George Eliot também foi banida da família pelo irmão, que se tornara o chefe do lar após a morte do pai, como resultado de um comportamento tido pelo irmão como amoral. Aos trinta e cinco anos, ela decidiu viver junto com o filósofo George Henry Lewes, que, no entanto, já era casado. Ele e a esposa tinham combinado de viver um relacionamento aberto, e ela tinha quatro filhos de outro homem, além dos três filhos comuns. No entanto, como um dos filhos alheios estava registrado como filho de Lewes, ele foi considerado cúmplice do adultério da esposa e impedido de se divorciar dela.
Nenhuma dessas circunstâncias possivelmente atenuantes importou para Isaac Evans. Ele ficou sem falar com Mary Ann por quase trinta anos, até ela se casar com outra pessoa, após a morte de George Lewes. Durante esse período, ele sequer permitiu que Mary Ann se avistasse com a irmã deles quando esta estava doente com a doença que a matou.
Essa inflexibilidade é a principal característica de Tom no livro. Ele também se caracteriza por ser tacanho, teimoso, e, honestamente, é difícil não antipatizar com ele. Talvez a mágoa tenha levado a autora a carregar nas tintas; é fato que só temos seu lado da história; mas ela também reconhece as qualidades do irmão — como probidade e perseverança — e, pelo desenrolar da trama, vê-se que ela desejava muito uma reconciliação.
Há outros aspectos da história que merecem destaque. Jungido aos dramas pessoais da história, desenrola-se um drama social: o declínio da Inglaterra rural ante o progresso do capitalismo. Mais precisamente, da pequena burguesia rural, pouco instruída, religiosa e tradicionalista, cujas pequenas propriedades vão sendo aos poucos engolidas por proprietários com mais recursos econômicos e políticos, empurrando as novas gerações para a cidade. Todo um modo de vida acaba sendo superado, ante as mudanças no modo de produção. A família da Sra. Tulliver, as Dodson e seus maridos, são a representação perfeita dos tipos que faziam parte dessa camada social intermediária, tipos que, como se pode ver, não se reproduzem completamente em nenhum dos seus descendentes, seja Maggie, Tom ou Lucy.
Não menos importante, há a questão da sexualidade feminina, que também ganha atenção na obra, embora do modo leve e enviesado esperado para a literatura britânica de então. Não há alusões muito ousadas; a ousadia está na própria retratação da mulher capaz de se sentir fisicamente atraída por um homem, como Maggie por Stephen, e se sentir mais inclinada a viver tal amor do que um que só lhe toca a alma, como com Philip. A situação, todavia, não é posta de modo tão simplista — e nisso está a genialidade da autora. Porque o amor de Stephen também não satisfaz Maggie por completo, assim como o de Philip. Ideal para ela, talvez, fosse ter os dois unidos numa só pessoa. E, ainda assim, é possível que ela não se sentisse completa. Eis a vantagem de ler um livro sobre uma mulher escrito por uma mulher. Eliot é nos mostra, pelas atitudes de Maggie, que há outras coisas na vida de uma mulher — família, princípios, anseios, busca por conhecimento — de importância igual ou maior aos amores românticos. E que está tudo bem se orientar por elas.
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