João 16/06/2022
Dante e Virgílio: O resgate na selva escura – Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho.
A fortuna crítica dedicada à Divina Comédia se tornou tão numerosa e próspera naquilo que se propõe, que para o leitor moderno ela funciona como um caminho da perdição, isto é, quanto mais se lê a respeito do sumo poema de Dante, mais se descortina a sua infinitude.
E está aí a delícia. A capacidade do poema de continuar oferecendo novas camadas de significados, todas absolutamente coerentes e harmônicas com a proposta literária do poeta, só revela a sua qualidade de fonte inesgotável para a crítica literária.
Assim, os comentadores da Divina Comédia atuam como paleontólogos vocacionados a escavar a areia dos manuscritos de Dante em busca de novos achados. E isso não se dá - como alguém equivocadamente poderia supor - porque a Divina Comédia é um poema datado. Absolutamente, não. Salvo pelos personagens históricos que pipocam ao longo de todo o poema, a matéria-prima da Divina Comédia não é datada, mas pertence ao tempo do universal. De modo que é menos a localização histórica do poema, e mais a dificuldade imposta pelo amálgama entre a linguagem poética - às vezes literal, às vezes figurada –, o acentuado simbolismo e o portentoso emprego do conhecimento antigo e escolástica que desafia o eterno retorno à obra de Dante.
Por isso, a constante renovação da fortuna crítica só faz revelar a qualidade intrínseca da Divina Comédia: a sua infinitude.
O ensaio do psicanalista Luiz Carlos Uchôa vem, em certa medida e nessa mesma toada, agregar comentários e propor novas perspectivas de abordagem para os episódios que animam narrativa.
O fato de o autor do ensaio lançar mão de conceitos psicanalíticos no intuito de compreender as opções adotadas por Dante na construção do poema contribui para desvendar a inteligência e a grandeza por detrás da obra.
Nesse ponto, interessa mencionar o conceito de “duplo” proposto pelo autor como ferramenta para compreender a relação entre Dante e Virgílio. Nesse sentido, o autor sugere que, consciente ou inconscientemente, a escolha de Virgílio como guia do personagem Dante guarda sintonia com a necessidade do poeta de lidar com a “angústia de influência” (H. Bloom).
Depreende-se da ideia de “angústia de influência” que o desenvolvimento da personalidade, da psique e da maturidade intelectual e emocional de todo indivíduo passa, em certa medida, pelo embate do Eu com o Outro. Nessa relação de conflito, mas também de síntese, o sujeito que angustia por encontrar no Outro um espelho para si próprio também deposita naquele seus dilemas e suas aflições, que após digeridas nessa relação de alteridade vão permitindo a sintetização da identidade do sujeito.
Segundo o ensaísta, o conceito de duplo é mais amplo que a ideia de "alter ego" (eu complementar/eu contraposto). Há no conceito de duplo, entre outras ideias, uma noção de relação especular, onde o Eu depende da sua projeção no Outro, para desanuviar sua identidade, e, por fim, para superar o Outro no campo das qualidades que antes apenas exerciam influência sobre ele.
E é interessante notar que, de fato, isso sucede em vários momentos da narrativa dantesca, seja quando o personagem Dante expressa sua profunda admiração e filiação ao estilo poético de Virgílio, ou quando o personagem se socorre do poeta latino em momentos de dúvida e hesitação; seja, por fim, quando, já avançados na jornada, Dante começa a se desprender sutilmente do Mestre, como que superando-o.
A par disso, o ensaísta também introduz conceitos literários, tal como o de “formas figurais” desenvolvido por Auerbach, para auxiliar na compreensão da criação poética do escritor florentino. Nesse particular, demonstra como as “figuras” naturalmente embutem em si um certo sentido velado, cifrado, a exigir interpretação alegórica a partir de semelhanças e diferenças mantidas com certos personagens, objetos ou instituições.
Vale mencionar que dado o interesse do ensaísta na relação especular entre Dante e Virgílio, os seus comentários se limitaram a algumas passagens do Inferno e do Purgatório, posto que somente nesses dois mundos a jornada de Dante se fez acompanhar de Virgílio, já que o Paraíso está interditado para este último, dada a origem pagã do poeta latino.
Uma grata surpresa que acompanha o ensaio são as ilustrações de Doré, Blake, Botticelli e Dalí ao final do livro, que agregam um formidável colorido às passagens comentadas do poema.