Darkpookie 30/06/2020
Comentários e trechos
Esse livro é facilmente confundido com alguma obra de comédia ou auto-ajuda, seja pela capa ou pelo título, mas na verdade se trata de um livro de filosofia. Acredito que seja ótimo para quem ainda não leu muitas obras filosóficas, já que pode servir como uma apresentação de um texto escrito que faz uso de uma lógica no raciocínio e uma estruturação característica da filosofia. Além, é claro, de ser um tema simples (pode ser que você ache que não é um tema nobre/útil, entretanto não acho que a filosofia necessariamente precise de uma utilidade) e corriqueiro, ele é desenvolvido com uma linguagem bem mais fácil que outros livros da área.
Falar merda, segundo o autor, está intimamente ligada a falta de preocupação com a verdade e com uma camuflagem das coisas (não necessariamente algo mentiroso, mas adulterado). Segue alguns trechos importantes:
"Esse é o ponto crucial da distinção entre ele [falador de merda] e o mentiroso. Ambos representam a si mesmos de modo falso, como se tentassem comunicar a verdade. O sucesso de cada um depende de eles nos enganarem a respeito disso. O fato ocultado pelo mentiroso é sua tentativa de nos afastar de uma apreensão correta da realidade; nós não podemos saber sobre seu desejo de que acreditemos numa coisa que ele supõe falsa. O fato que o falador de merda oculta sobre si, por outro lado, é que o valor de verdade de suas afirmações não tem um interesse fundamental para ele; o que não devemos descobrir é que sua intenção não é relatar a verdade nem ocultá-la. Isso não significa que seu discurso seja anarquicamente impulsivo, mas que o motivo a orientá-lo e controlá-lo está pouco interessado em saber como são de fato as coisas que ele fala."
"Para a maioria dos indivíduos, o fato de uma afirmação ser falsa já constitui em si uma razão, por mais fraca e facilmente superável que seja, para não ser feita. No caso do mentiroso genuíno de santo Agostinho, essa é uma razão a favor de se fazê-la. Para o falador de merda, não é algo a favor nem contra. Tanto ao mentir quanto ao falar a verdade, as pessoas são guiadas por suas crenças a respeito de como as coisas são. Isso as orienta quando tentam descrever o mundo de forma correta ou descrevê-lo enganosamente. Por essa razão, mentir incapacita uma pessoa a dizer a verdade da mesma forma que falar merda tende a fazer. Por um excesso de satisfação nesta última atividade, que envolve fazer afirmações sem se preocupar com nada, exceto com aquilo que convém a alguém dizer, o hábito normal de se atinar com a realidade das coisas pode atenuar-se ou até perder-se. Tanto quem mente quanto quem fala a verdade atuam em campos opostos do mesmo jogo, por assim dizer. Cada um reage aos fatos como os entende, embora a reação de um seja guiada pela autoridade da verdade, enquanto a reação do outro desafia essa autoridade e se recusa a satisfazer suas exigências. O falador de merda as ignora como um todo. Ele não rejeita a autoridade da verdade, como faz o mentiroso, e opõe-se a ela; simplesmente, não lhe dá a menor atenção. Em virtude disso, falar merda é um inimigo muito pior da verdade do que mentir.
Aquele que se preocupa em relatar ou ocultar fatos supõe, de alguma forma, que alguns deles são distintos e reconhecíveis. O interesse em dizer a verdade ou em mentir pressupõe que existe uma diferença entre entender as coisas de forma errada e de forma certa, e que pelo menos às vezes é possível perceber essa diferença. Quem pára de acreditar na possibilidade de identificar certas afirmações como verdadeiras e outras como falsas tem apenas duas opções. A primeira seria abrir mão de dizer a verdade e de enganar. Isso significaria abster-se de proferir qualquer afirmação sobre os fatos. A segunda opção seria continuar fazendo afirmações que pretendessem descrever o modo como as coisas são, mas isso não seria outra coisa senão falar merda.
Por que se fala tanta merda? É claro que é impossível saber se hoje se fala relativamente mais merda que no passado. Há mais comunicação de todo tipo em nossa época do que já houve antes, mas a parte que equivale a falar merda pode não ter aumentado. Sem pressupor que sua incidência seja maior agora, vou mencionar algumas considerações que ajudam a justificar o fato de que isso seja algo tão notável nos dias de hoje.
É inevitável falar merda toda vez que as circunstâncias exijam de alguém falar sem saber o que está dizendo. Assim, a produção de merda é estimulada sempre que as obrigações ou oportunidades que uma pessoa tem de se manifestar sobre algum tópico excederem seu conhecimento dos fatos pertinentes. Essa discrepância é comum na vida pública, em que os indivíduos são com frequência impelidos — seja pelas próprias inclinações ou por exigência de outrem - a falar sobre questões em que são até certo ponto ignorantes. Exemplos intimamente relacionados se originam de uma convicção generalizada de que é dever do cidadão, numa democracia, ter opiniões sobre tudo ou, pelo menos, tudo aquilo que diga respeito à condução das questões de seu pais. A falta de um nexo significativo entre as opiniões de uma pessoa e sua apreensão da realidade vai tornar-se ainda mais grave, é desnecessário dizer, para alguém que acredite ser seu dever, como agente moral consciencioso, avaliar acontecimentos e condições de todas as partes do mundo.
A atual proliferação do ato de falar merda tem também raízes muito profundas em várias formas de ceticismo, que negam o fato de que possamos ter acesso confiável a uma realidade objetiva e rejeitam, portanto, a possibilidade de sabermos como as coisas na verdade são. Essas doutrinas “ante-realistas” minam a validade de todo esforço desinteressado para se determinar o que é verdadeiro e o que é falso, e até a falta de inteligibilidade da noção de investigação objetiva. Uma das reações a essa perda de confiança tem sido o afastamento da disciplina requerida pelo ideal da correção em direção a um tipo de disciplina completamente diferente, que é imposto pela perseguição a um ideal alternativo de sinceridade. Em vez de buscar chegar primeiramente a representações precisas do mundo comum, o indivíduo se volta para a tentativa de oferecer representações honestas de si. Convencida de que a realidade não tem nenhuma natureza inerente, que ela pudesse ter esperanças de identificar com a verdade sobre as coisas, a pessoa dedica-se a ser fiel à sua natureza. E como se percebesse que, uma vez que não faz sentido tentar ser fiel aos fatos, deve, em vez disso, esforçar-se para ser fiel a si mesma."