Leila de Carvalho e Gonçalves 03/07/2018
Um Salto No Ar
Publicado em 1977, "A Canção de Solomon" é o terceiro romance de Toni Morrison, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 1993. Pós-moderno, ele flerta com três gêneros literários ? realismo mágico, bildungsroman e prosa épica ? e seu fulcro é a descoberta do passado de Solomon pelo bisneto, Macon Dead III, mais conhecido por Milkman por conta do longo período que foi amamentado pela mãe.
Ambientado numa cidade qualquer no estado de Michigan, o romance se move através das perspectivas de várias personagens e vai de 1931 a 1963, período anterior as primeiras leis anti-segregação. Marcado pela extrema violência, Morrison menciona o linchamento de um adolescente (Chicago, 1955) e a morte de quatro meninas durante o bombardeio de uma igreja batista (Alabama, 1963), duas tragédias reais cujas vítimas eram afro-descendentes.
A narrativa abre e fecha com um salto no ar, inspirada numa antiga lenda sobre a existência de homens voadores. Transmitida oralmente pelos escravos levados para os Estados Unidos, remete ao mito do retorno à África, deixando para trás essa cruel condição. Contudo, é impossível não associar o título a "Solomon's Song of Songs", especialmente para a interpretação de Orígenes, que é uma alegoria sobre a união mística da alma com Deus. Existem outras semelhanças, por exemplo, as duas obras possuem dois capítulos e, enquanto o livro bíblico narra o início e o amadurecimento do amor, o romance exibe o nascimento e a formação do protagonista. Aliás, um aspecto que está ligado ao resgate das origens de Milkman e também pela ausência do umbigo de Pilates, sua tia, que representa a mulher em sua plenitude e é a principal personagem feminina.
Outro aspecto fundamental para o desenvolvimento da trama é o aprofundamento do conflito entre o protagonista e seu melhor amigo. Macon Dead III não passa de um menino mimado e egoísta, filho de um negro rico e neto de um mulato formado em Medicina. Discriminado, ele não encontra espaço no mundo em que vive, ao contrário de Guitar, um órfão miserável criado pela avó, que faz parte de uma organização criminosa. Chamada "Seven Days", ela pretende vingar os assassinatos de negros pela população branca, pagando com a mesma moeda. Enfim, eviscerando o ódio e preconceito, os dois trafegam num mundo de perdedores e lutadores, inocentes e assassinos, onde ninguém é exclusivamente bom ou ruim.
Considerado um dos melhores romances de Toni Morrison, infelizmente, a edição em português está esgotada há anos e restrita a sebos. Por sinal, quando encontrado, é oferecido por um valor astronômico.