Stella F.. 26/09/2022
A descoberta do mundo
Infância – Graciliano Ramos – Editora Record – 2008
Este livro foi escrito em forma de pequenos textos independentes, e posteriormente foi transformado em livro, publicado em 1945. Por isso, não há uma sequência cronológica nas páginas e capítulos, parecendo fragmentado. Mas, aos poucos, vamos nos acostumando a escrita maravilhosa, mas muito melancólica de um Graciliano Ramos já adulto, voltando ao passado e tentando lembrar o que sentiu ao longo daquela infância em Alagoas e Pernambuco, dos dois aos onze anos.
Vemos desde o início que as lembranças são fragmentadas, mas algumas são recorrentes, assim como alguns termos se repetem ao longo da narrativa, usados de maneira frequente pelo memorialista como por exemplo: névoa, vapor e nuvem; treva e sombra; teia de aranha (Oliveira, 2022, pg. 158)
Podemos selecionar alguns temas como:
• o deslocamento da família por causa da seca
• a educação falha; a falta de amor da mãe, mas a lembrança de que ela tentava de alguma maneira ler
• o pai trabalhador, porém, grosseiro
• sua doença nos olhos recebendo dois apelidos que muito o chateavam: bezerro-encourado e cabra-cega: “Na escuridão percebi o valor enorme das palavras” (posição 1358)
• o medo que o paralisava, mas que de alguma maneira o movimentava: “Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor. Depois as mãos finas se afastaram das grossas, lentamente se delinearam dois seres que me impuseram obediência e respeito.” (posição 66)
• a escola como castigo por não gostar dos métodos e ter dificuldade de aprendizagem (escrita pedante, soletração, professores ruins)
• a salvação por uma professora muito carinhosa
• a descoberta dos livros de uma maneira inimaginável.
Mas o escritor também tinha lembranças boas, carregadas de afetos por alguns amigos e pelo avô que tecia urupemas, como ele tecia palavras. “O autor, insensível à crítica, perseverou nas urupemas rijas e sóbrias, não porque as estimasse, mas porque eram o meio de expressão que lhe parecia razoável.” (posição 156).
Além do sofrimento familiar e com as letras, e algumas aventuras interessantes, o escritor teve contato com a religião, com pessoas que diziam ao contrário do que pensavam: “Mas os gabos se prolongaram, trouxeram-me desconfiança. Percebi afinal que elas zombavam, e não me susceptibilizei” (posição 1887); entendeu um pouco sobre sua família e uma irmã natural; foi preconceituoso algumas vezes, e solidário com o sofrimento de outros muitas vezes também, não entendendo alguns castigos infligidos a pessoas que não pareciam merecê-los.
Segundo Octavio de Faria, no posfácio “Em Graciliano Ramos o menino Graciliano é tudo. Seus heróis são o menino, sua timidez é a do menino, seu pessimismo é a do menino, sua revolta é a do menino.” (posição2534)
Segundo Oliveira (2022) “As doenças e o sofrimento psíquico maltrataram o narrador de Infância que se solidarizava também com as outras crianças que, como ele, também sofriam violência física e moral. Entretanto, apesar dos padecimentos por que passou, foi surpreendido com momentos imprevistos de satisfação, em que vivenciou descobertas cognitivas e afetivas. Dessa forma, Infância, através da rememoração, dá a medida dessas incongruências que parecem constituir o mundo, apreendidas pelo olhar do adulto, que está em permanente e sensível diálogo com o menino.” (pg. 174) E essas lembranças boas podem ser associadas à leitura no armazém do pai, o acesso aos livros do tabelião Jerônimo, a descoberta de livros que o faziam querer aprender a ler e interpretar de maneira livre, sem castigos e com lógica.
Bibliografia:
Graciliano Ramos: a melancolia e as ironias da memória de Ana Maria Abrahão S. Oliveira (2022)