spoiler visualizarMiriam.Mariana 05/11/2021
Excelente
Um Inimigo do Povo, passa-se numa cidade no interior da Noruega cuja maior fonte de rendimento provém de uma estação termal. Esta obra retrata o conflito existente entre o individual e o coletivo, mostrando de que forma a população transforma o médico, Tomas Stockman, de cidadão honrado, herói em vilão, um inimigo do povo, pela opinião pública através do jornal Mensageiro do Povo, por conta das suas convicções, pois este investiga a poluição e contaminação das águas da estação termal. O perfeito Peter Stockman, o irmão do médico, acredita que alarmar a cidade em torno do problema tiraria o sossego e o lucro dos cidadãos.
Esta obra, apesar de ter sido escrita há muitos anos, não difere muito do que acontece hoje em dia: nós vivemos a ciar e a eliminar unanimidades de acordo com o vento da opinião pública. Infelizes são aqueles que tentam remar contra ela, como o Thomas Stockman fez, pois teve de enfrentar o poder oficial, o poder da imprensa (Mensageiro do Povo) e os burgueses, que quando querem conseguem transformar vinho em água.
Tal como evidenciado no breve resumo da obra, podemos retirar que o dilema presente nesta obra é a verdade como ameaça, o confronto entre os valores individuais e coletivos, a manipulação da opinião pública, a ética e o poder.
A pequena cidade retratada orgulha-se dos seus princípios democráticos, que rapidamente são desconstruídos no decorrer da peça - primeiramente, quando a elite da cidade usa os ditos processos democráticos para manter e florescer o seu poder e, ainda, quando o Dr. Sockman é ostracizado face à sua descoberta controversa pelo poder excessivo da opinião pública.
Ibsen reflete sobre a verdadeira influência da maioria nos sistemas partidários e como estes acabam por governar indiretamente, visto que impossibilitam os líderes de agir honestamente, estes apenas moldando-se a um interesse coletivo, do qual retiram benefícios para o seu posicionamento na sociedade. Esta temática apela a uma visão cética do governo e confronta o conceito de dever e interesse numa sociedade, noções de reconciliação nem sempre lineares.
A opinião pública domina a cidade, evidente no facto das ideias do doutor serem avaliadas não pelo seu mérito mas pela sua popularidade com o público. A confirmação de que a contaminação da água iria requerer o encerramento dos balneários e a perda de salários, imediatamente posiciona o público contra a descoberta, escolhendo acreditar que se trata de uma mentira. Este cenário é usado também para criticar os media que, segundo o autor, são subjugados a autoridades de interesse próprio, necessidades financeiras e, ainda, satisfação do público-alvo. Isto remete para a impraticabilidade da contradição da opinião pública por parte dos jornais, que estão demasiado embebidos nas suas comunidades para as criticar de forma imparcial. De facto, os media são representados como um veículo de reflexão do estado atual da cidade e não como um veículo para a verdade e progressão.
Quanto à verdade e a política, os cientistas políticos chamam de “epistocracia” a um governo de uma minoria esclarecida sobre a maioria ignorante. A mensagem deste livro é na essência antidemocrática, pois ele nega ao povo, que é visto como massa de “imbecis”, o discernimento necessário para tomar as melhores decisões no seu próprio nome. Em termos de políticas públicas, o resultado de uma epistocracia seria mais eficaz. A afirmação de que a água está contaminada vai provocar danos irreparáveis à comunidade, portanto cria-se um combate entre o que é real e concreto e as consequências que essa verdade tem numa comunidade que não é aquilo que a própria deseja. No fundo, preferem manter-se numa idealização que se baseia numa mentira.
Apesar de se esperarem bons resultados, o principal objetivo da democracia não é alcançá-los. Nenhuma Constituição democrática veta à maioria o direito de errar, nem lhe impõe o dever de acertar. A vantagem da democracia não está necessariamente em conduzir à verdade e ao bem comum, mas em estabelecer uma regra de convívio pacífico que todos respeitem, em permitir a transição pacífica de poder entre diferentes grupos. É inerente à democracia, como a qualquer regime político, a tensão com a verdade.
Constata-se nesta obra uma gradual suspeita dos modelos políticos no que toca à influência das elites e dos líderes, bem como um ceticismo para com as pessoas comuns e o seu poder de reflexão.
Com todos estes confrontos de ideais e dilemas, a que a leitura desta peça teatral nos suscita, podemos então refletir na seguinte pergunta: Devem os indivíduos submeter-se cegamente à autoridade, sabendo que esta zela pelos interesses comuns?- Política é entendida por vários autores, como sendo um processo ou atividade através da qual são conciliados diferentes interesses, ainda que divergentes, para que em decisões coletivas possam alcançar os seus interesses comuns, afim de proporcionar uma participação no poder da comunidade ou nação em prol do bem-estar de todos. Se são decisões coletivas e se são grupos/pessoas que são chamadas a tomar essas decisões, estamos a desprezar a vertente política quando deixamos que alguém decida por nós. Ainda estas decisões políticas são vinculativas, ou seja, uma vez tomadas, afetaram todas as pessoas/grupos e se deixarmos que alguém decida por nós de forma “ cega”, estamos a aceitar que alguém escolha como nós vamos viver e consequentemente que também pensamos dessa maneira. E enquanto cidadãos com interesses individuais, nunca podemos tomar como adquiridos e desvalorizar os valores e direitos de liberdade e autodeterminação.
Como exemplo claro do que foi dito anteriormente é esta obra de Ibsen, a qual retrata uma verdadeira luta solitária de um homem em prol daquilo que considera ser a verdade na sua consciência moral, pois, o médico não se afastou das suas convicções morais, e pensou mesmo que as pessoas iriam apoiar a sua decisão “individual” ao denunciar que as águas estavam contaminadas, mas pelo contrário, como o interesse das autoridades era diferente do seu foi imediatamente visto como um visionário pois não tinha provas concretas do que dissera e neste caso o interesse maioritário era o das autoridades e não o seu.
Podemos ver assim uma verdadeira oposição entre aquilo que é o interesse coletivo e o idealismo e a maneira como está relacionada aqui o conceito de política.
Factos como guerras, revoluções, experiências com a política e o facto de a política dispor de técnicas na forma de bombas, vírus para eliminar a Humanidade, podem fazer-me perguntar pelo sentido da política, da educação, da comunicação, do trabalho e da vida e podem ser vistos como causas de transformações que ocorreram nas sociedades, fonte de crises políticas, económicas, sociais e culturais.
A situação como a que vivemos atualmente é como uma guerra mundial e todos os países que participaram nas I e II Guerras Mundiais têm casos registados de Covid-19.
Na União Europeia os Estados-Membros tardaram a adotar medidas restritivas dos direitos e liberdades e garantias dos cidadãos, pois temiam consequências económicas resultantes das suas declarações e veem numa perspetiva individual, sonegando posições de ajuda comum, como foi a posição do primeiro ministro da Holanda a propósito do pedido de ajuda de Itália para fazer face ao Covid-19 .
Facto este aproveitado pelo primeiro ministro de Portugal para criticar a falta de solidariedade de alguns países da União Europeia. Afinal, por que razão os países não adotam posições comuns relativamente a um inimigo comum (Covid-19)? É preciso entender que a economia são as pessoas . Parece que os políticos desconhecem a ideia da “coisa política” que, como na polis grega, deve organizar, regular, defender, curar o convívio de diferentes. Possivelmente estará aqui uma nova dimensão para o futuro da administração pública da União Europeia e de cada Estado-Membro, reinventar compromissos públicos comuns obrigatórios de ajuda recíproca dos Estado-Membros da União, em estado de necessidade, como a pandemia que se vive atualmente, e não reformas difíceis de cumprir.
Já no tempo da Alemanha Nazi, designada assim durante o período entre os anos de 1933 e 1945, quando o governo era controlado por Adolf Hitler, podemos encontrar o mesmo problema que encontramos em Um Inimigo do Povo, os alemães ao ouvirem todos os dias na rádio diálogos em que consideravam os judeus “vermes parasitas que deveriam ser eliminados” acreditavam que isso era o correto, pois eram movidos conforme a opinião pública.
Os judeus usavam ferramentas que estavam sob seu controle ou eram por eles manipuladas– a mídia, a democracia parlamentar com seu foco em direitos individuais, e as organizações internacionais dedicadas à resolução pacífica de conflitos nacionais – para levar adiante seu impulso biológico para controle do poder mundial. Se a Alemanha não agisse decisivamente contra os judeus, tanto dentro como fora do país, alegava Hitler, as multidões de eslavos e asiáticos sub-humanos e não civilizados, que os judeus poderiam mobilizar, acabariam por exterminar a raça "ariana".
Hitler acreditava que, pela sua superioridade racial, os alemães tinham o direito e o dever de tomar, dos eslavos, "asiáticos" e de seus fantoches judeus, os territórios do Leste. Na busca para alcançar tais objetivos, insistia Hitler, os alemães estavam apenas seguindo seus instintos biológicos.
Para eliminar essa doutrina prejudicial, perigosa à sobrevivência dos alemães, era necessário eliminar as pessoas que por natureza eram seus criadores e sustentos, pois segundo Hitler, era assim que a natureza funcionava. Em suma, o programa de guerra e de genocídio de Hitler foram resultantes do que ele via como uma equação: os alemães "arianos" precisavam se expandir e dominar outros povos e espaços, um processo que exigia a eliminação de todas as ameaças raciais—especialmente a judaica—ou então eles próprios seriam extintos e, tal como em Um Inimigo do Povo, através da opinião pública e tendo os mídia do seu lado, conseguiu influenciar todos os alemães a ajudá-lo a realizar o pretendido – eliminar a etnia judaica.