Relato de corpos sutis

Relato de corpos sutis Miriam Portela




Resenhas - Relato de corpos sutis


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Krishnamurti 24/08/2019

Um convite à percepção das sutilezas da vida
É comum destacarmos as diferenças referentes a poesia e a prosa, geralmente evidenciando as distinções quanto à estrutura e à linguagem desses gêneros. Formalmente, como traços distintivos da poesia, apontamos as rimas que marcam os versos e formam as estrofes dos textos poéticos, diferentemente do texto em prosa, que é escrito verticalmente, em forma de narrativas, seguindo uma linearidade. É possível entretanto, unir prosa e poesia em um mesmo texto sem que estejam em pontos divergentes, mas complementares. Assim, a dita prosa-poética na qual poucos escritores se aventuram, e raros logram alcançar resultados inusitados e frutíferos.

Em “Relatos de corpos sutis” da escritora Miriam Portela que a editora Laranja Original lança em breve, o leitor é informado de chofre, e na primeira página, de que se trata de um apanhado de manuscritos recebidos após a morte de uma mãe, e endereçados à filha que assume a voz narrativa. Histórias urdidas no leito de uma enferma terminal. No limiar entre a vida e a morte foram descritas experiências que se sucedem versadas em prosa poética e que, constituem o capítulo – “Corpos sutis”. Esse o mote simplificado da obra da senhora Miriam Portela.

Simplicidade. É o que a autora ardilosamente planta na sensibilidade do leitor logo de inicio. É artifício muito bem urdido, porque provoca, já na partida, a curiosidade. O “livro primeiro”, se constitui de dois textos breves com o subtítulo de “Visitações”: “A invasão”, confirma a expectativa de que os relatos que se seguirão são fruto das vivências da enferma. Mas sob qual ponto de vista? O da mulher que encontra-se no limiar entre a vida e a morte? Seria natural que se afigurasse mera rememoração, mas não é o que ocorre precisamente. A “simplicidade” vai, muito sutilmente, se adensando. Veja-se como o texto “A invasão” se inicia de forma absolutamente provocadora: “A borboleta pousou na toalha xadrez. Teria se equivocado? Confundira as cores e os elementos? Se eu esticasse os dedos, poderia tocá-la. Só agora me dava conta de que minha presença não mais atemorizava os insetos e pássaros. Já podíamos dividir a intimidade sem reservas. A conquista de mais essa liberdade me fez sorrir. Seria a transparência da pele que me garantia o direito tardio?”

E o leitor é convidado a embarcar num mundo envolto em mistérios, sombras e luzes que se estabelece naquele quarto a partir do contato com os tais “corpos sutis”, ou entidades. A certa altura, há o questionamento da mulher enferma:
- Por que escolheram a mim? – e a resposta foi:
- Você estava disponível.

Esse o estado de espírito que é invocado ao leitor. Estar disponível a novas e reveladoras experiências. Adiante as sombras perguntam:

- Como te contar o que tu mesma viveste? Por acaso não vês o que está impresso em teu próprio coração? Acreditas que a morte te roube o passado?

Então, “o rigor dos primeiros depoimentos”, que vão se desenvolver em 56 pequenos relatos convidam o leitor a adivinhar o que pertence, ou não, a cada uma daquelas sombras na ambiência metafórica, que nada mais é, do que a própria vida, onde nosso futuro está “gravado nas paredes do quarto, no silêncio das noites sem visitantes”. Ou seja, no eu profundo de cada um de nós.

O caráter dado ao conteúdo lírico expresso nas narrativas curtas leva mais fundo, para dentro de um eu poético, mas num sentido de alargar compreensões, empurrar limites, tocar em sutis frestas da condição humana. Aí a estratégia inteligente de sedução que a autora leva a efeito. Como escreve Jussara Bittencourt de Sá no Prefácio da obra, “desestabilizando concretudes de certezas formadas, conformadas”, de que a nossa humanidade anda tão necessitada. E podem acreditar; a autora sabe muito bem o que está fazendo, trabalhou em veículos de comunicação durante anos, e escreveu quase trinta livros.

Os textos da senhora Miriam Portela contemplam sentimentos que à primeira vista são próprios, individuais dos personagens, sem, no entanto, deixar de lançar um olhar sobre a vida de maneira mais ampla, remetendo-nos para reflexões sobre o caráter universal do gênero lírico. Para compreender e sentir, basta estar-se “disponível”. É preciso escutar, em nossas próprias solidões, a voz da humanidade, porque é no conteúdo expresso nas narrativas apreendidas numa perspectiva do individual para o universal, (já que cada leitor tem suas disposições particulares), que sentidos se esmiúçam, afloram sentimentos e ideias que fazem parte da vivência humana, de modo geral. Algo próximo daquilo que Emil Staiger identifica como certa disposição anímica do poeta lírico. Que não exige coisa alguma; ao contrário, cede, deixa-se levar para onde o fluxo arrebatador daquela disposição o conduza e quando nós – leitores –, nos encontramos em idêntica disposição interior, a poesia emociona.

Vale acrescentar, que as narrativas estão imbuídas de uma imaginação criadora que se diferencia da imaginação reprodutora. Não há a intenção de descrever pura e simplesmente, em reconstruir imagens derivadas da percepção e da memória. O simbolismo das imagens de “Relato de corpos sutis” não só revela aspectos profundos da existência, como também reconcilia o ser imaginante com a coisa ou a situação imaginada. Ai incluídas imagens, a demonstrar pulsões inconscientes, autênticas.

Há vários textos, inclusive, que se aproximam de imagens míticas. Naquele sentido invocado por Bachelard, de que as imagens poéticas evocam devaneios primordiais, exploram mitos ancestrais, associam-se a sentimentos universais, porque possuem estruturas multivalentes, que operam segundo uma dialética ambivalente. Realizam uma função psiquicamente fundamental: a de perquirir nossos abismos mais íntimos. São muitas as artimanhas da autora que tece textos deliciosos como o são “A caminho do mar”, “A cega”, “Na estação”, “Madalena”, “Revolução solar”, “Devoção”, “Tapeçaria”, “Cadeira de balanço”, e tantos outros.
Percebemos afinal, muito claramente, que o heterogêneo da prosa poética assemelha-se ao solitário e perene embate entre parcelas do homem que, como se percebe (e dentro de uma visada holística), são tanto antagônicas quanto complementares. A aparente contradição ou ambiguidade bastante frutífera no momento atual, porque promove a resistência do lirismo frente à hegemonia da racionalidade amalucada que vivemos. Isto não teria o condão de levar-nos a refletir se os inúmeros infortúnios e demais problemas contemporâneos, tanto no campo artístico quanto em todos os outros aspectos da existência, não provêm justamente dessa hegemonia/tirania que tal racionalidade pretende exercer sobre a Poesia da vida? É desta tensão ou fricção, entre essas potências que emergem novas facetas do belo de que o livro da senhora Portela é repleto.

“Relato de corpos sutis” é uma obra que, como declarou recentemente a própria autora, quase se perdeu no tempo por conta de uma pane em seu computador. Precisou de vinte anos para ser recuperada. O tempo lhe fez bem, revestiu-o, sem dúvida, de maturidade. Uma maturidade que encanta e seduz a seguir exemplos. Como o da velha fiandeira que encontramos em “tempos ígneos”. Há naquele texto a metáfora da própria vida. A vida que inexoravelmente segue tecendo existências com o fito de que possamos nos apropriar de verdades como esta:

“Vencido o medo, mergulha neste caldo espesso, em que só se trocam os corpos, mantendo o mesmo desejo de permanência. Busca, até a exaustão, o próprio reflexo, perdido nas dobras do tempo, na confusão de perfis. Vai, escreve tua história, para que eu borde no manto, enquanto meus dedos estão quentes e o fogo aceso.”. E está dito quase tudo. Quase. Há mais ainda, muito mais para aqueles que se resolverem a saber. É conferir na obra.


Livro: Relatos de corpos sutis – Contos de Miriam Portela – Editora Laranja Original,São Paulo - SP , 2019, 152 p.
ISBN 978-85-92875-57-2
Link para compra e pronta entrega: https://www.laranjaoriginal.com.br/product-page/relato-de-corpos-sutis

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