Antonio Luiz 12/08/2010
Lareira das vaidades
Quem já passou por alguma faculdade já conheceu, com certeza, um desses professores doutores que, seguidos por discípulos mudos de admiração (ou de medo), ridicularizam as objeções e costumam silenciar o adversário com citações de Popper ou Wittgenstein sacadas do bolso do colete.
O que acontece quando dois professores doutores chamados Karl Popper e Ludwig Wittgenstein se confrontam com pontos de vista inconciliáveis? Quando uma força irresistível encontra um objeto irremovível, como propõe uma velha charada filosófica?
Esse encontro de fato se deu. O histórico (e histérico) arranca-rabo durou dez minutos de uma fria noite de 25 de outubro de 1946, em Cambridge, durante os quais um atiçador de lareira foi freneticamente agitado.
Para esclarecer o que houve e por quê, dois jornalistas da BBC, David Edmonds e John Eidinow, investigaram décadas de história da Europa e do pensamento em "O Atiçador de Wittgenstein" e lançaram uma nova luz sobre a história e a sociologia da filosofia no século XX ainda que tenham superestimado a importância de seus heróis e de seu confronto, como se não houvesse alternativa à filosofia analítica que se tornou paradigma do mundo anglo-saxão.
O autor de "A Sociedade Aberta e seus Inimigos" não hesitava em humilhar alunos e colegas interessados em idéias que rejeitava (como a psicanálise) ou em desqualificar uma comunicação pelo título, se este não estivesse de acordo com suas concepções. O ex-discípulo Imre Lakatos, que formulou sérias objeções à sua teoria da ciência, tornou-se alvo de sua fúria até depois de morto.
Já o autor do "Tractatus Logico-Philosophicus" tinha o hábito de exaltar-se ante o menor sinal de objeção, incompreensão ou imprecisão. Gaguejava de raiva e agitava o que estivesse ao seu alcance como o famoso atiçador como se ameaçasse trucidar fisicamente o perpetrador do crime de lesa-sapiência. Em Cambridge, nunca chegou às vias de fato. Em 1926, porém, havia sido processado por bater em um aluno de 11 anos até deixá-lo inconsciente.
Suas origens sociais os separavam. As estratégias simbólicas usadas por um e outro para conquistar posições dominantes em seu campo poderiam ilustrar um tratado de Pierre Bourdieu.
Wittgenstein era filho de um dos industriais mais poderosos do Império Austro-Húngaro. Patrocinou Rilke e Kokoschka; sua irmã Margaret foi pintada por Klimt e analisada por Freud. Sublinhava sua distinção mostrando excentricidade e desprezo pela ética e estética pequeno-burguesas.
Provou seu desapego pelos bens materiais renunciando à herança do pai. Com parte dela, 1.700 kg de ouro, o irmão Paul (pianista mutilado na I Guerra Mundial e homenageado por Ravel com o Concerto para a Mão Esquerda) fez o III Reich esquecer as raízes judias das irmãs Hermine e Helene, que se recusaram a deixar Viena. Mesmo se há quem diga que o antissemitismo de Hitler começou pelo menino rico Ludwig, seu colega do primário (adiantado duas séries em relação ao pobretão Adolf, apesar de ter a mesma idade).
Vestia-se com cuidadosa displicência e aprovava o comunismo. Quando enjoava da filosofia, permitia-se largá-la por anos e desempenhar o papel de eremita, professor primário, jardineiro, auxiliar de enfermagem ou assistente de laboratório. Jamais se deu ao trabalho de publicar seu trabalho depois do delgado "Tractatus". Gostava de Agatha Christie e das histórias do detetive durão Max Latin, criado pelo norte-americano Norbert Davis, tanto quanto de Dostoievski e Kierkegaard. Preferia bons escritores de contos policiais a maus filósofos: São como donos de cortiços. É meu trabalho acabar com eles. Desprezava o casamento e era homossexual.
Já Popper, pequeno-burguês arquetípico, trabalhou como professor primário e secundário não por opção, mas por necessidade, quando sua família foi empobrecida pela crise dos anos 20. Encontrou fechadas as portas da alta intelectualidade vienense, de um lado por ser filho de um judeu convertido, de outro por criticar Wittgenstein. Ameaçado pelo nazismo e desesperado por um cargo universitário que lhe permitisse fugir do país, só o conseguiu na distante Nova Zelândia.
Era filosoficamente iconoclasta, mas conformista no resto. Sua dedicação à carreira acadêmica foi exemplar. Trabalhava e escrevia de forma contínua e sistemática. Seu vestuário e gosto literário (Jane Austen e Anthony Trollope) eram calculadamente convencionais, bem como seu casamento, melancólico, mas mantido até o fim (divertiu-se bem mais, dizem os autores, depois de viúvo).
Conquistou a fama não com sua inovadora "Lógica da Investigação Científica" traduzida para o inglês só em 1959, embora editada na Alemanha 25 anos antes mas como ideólogo neoliberal. Foram o crítico de arte Ernst Gombrich e o economista Friedrich von Hayek que, ao patrocinarem a publicação de sua "Sociedade Aberta", lhe abriram as portas da cidadania britânica e da ambicionada vaga de professor na Inglaterra ainda que fosse na plebeia Escola de Economia da Universidade de Londres e não nas aristocráticas Oxford e Cambridge.
Nestas, pontificava Wittgenstein. Desmascará-lo como fraude filosófica era, nos planos de Popper, o próximo passo. Convidado para uma palestra na toca do rival, não perdeu tempo: começou com um ataque virulento aos próprios termos do convite do professor Richard Braithwaite, formulado a partir do ponto de vista de Wittgenstein. Este se levantou e contestou as afirmações de Popper com a habitual exaltação gaguejante.
Bertrand Russell, irritado com seus maus modos (e com o desprezo de Wittgenstein por sua produção intelectual recente), disse-lhe para largar o atiçador e acusou-o de misturar tudo. Wittgenstein simplesmente foi embora, como freqüentemente fazia no meio de palestras.
Foi assim que a maioria dos sobreviventes consultados pelos autores reconstruiu o incidente (se bem que um deles confessou ter se interessado mais pelas pernas da esposa de Braithwaite do que pela fúria dos titãs). Popper, ao que parece, iludiu a si mesmo: em sua autobiografia (na qual os autores identificaram ainda outras falsas lembranças), registrou uma versão mais épica do episódio, na qual teria enfrentado e humilhado pessoalmente o rival. Quanto a Wittgenstein, mencionou, em bilhete a um amigo, uma reunião nojenta... em que um asno chamado doutor Popper, de Londres, disse tanta bobagem como eu não ouvia há muito tempo.
George Soros, Helmut Schmidt, Helmut Köhl, Vaclav Havel, Bruno Kreisky, Harold Wilson, Margaret Thatcher e o Dalai Lama homenagearam Popper até sua morte em 1994. Suas obras foram incorporadas ao cânon neoliberal, no mesmo patamar das de Milton Friedman e Hayek, mas entre filósofos da ciência soa, após as críticas de Lakatos, Paul Feyerabend e Thomas Kühn, um tanto datada.
Já a difícil obra tardia de Wittgenstein, recolhida e editada por alunos e admiradores, continua a desafiar pesquisadores. Entre os filósofos, Wittgenstein, apesar de morto em 1951, riu por último. Em 1998, uma pesquisa entre profissionais, que o colocou como o quinto maior filósofo da história, depois de Aristóteles, Platão, Kant e Nietzsche, sequer citou Popper.