Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho

Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho Richard Burton



Resenhas - Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho


1 encontrados | exibindo 1 a 1


Antonio Luiz 12/08/2010

Xangô em Regent Street
Imagine se uma equipe de historiadores interessados pudesse dispor de uma máquina do tempo e da oportunidade de, através dela, enviar um agente para percorrer o Brasil de Pedro II e recolher toda a informação possível.

Como seria o anúncio de “precisa-se”? Seria desejável que conhecesse história, política, economia e literatura. Fantástico, se também fosse geógrafo, antropólogo, folclorista e lingüista com experiência prática em quatro continentes e uma mente tão flexível quanto possível. Inacreditável se tivesse trânsito em todas as camadas sociais e experiência como explorador, aventureiro, espião e diplomata. Ninguém ousaria pedir que, ainda por cima, falasse 43 línguas e dialetos, tivesse amplo conhecimento de botânica, zoologia, geologia e análise financeira e fosse um escritor brilhante, capaz de criar relatos não só claros e objetivos, como também atraentes e divertidos.

Mas qual o sentido, ora direis, dessa fantasia inverossímil? Nem os criadores de James Bond e Indiana Jones jamais se atreveram a imaginar um personagem tão hábil e versátil.

Acontece que às vezes a realidade supera a ficção.

Sir Richard Francis Burton, admirador de Alencar, Gonzaga e, principalmente, de Camões (sua alma gêmea), escreveu 30 traduções para o inglês – incluindo "As 1001 Noites", "Os Lusíadas", "Iracema" ("The Honey-lips") e os clássicos do erotismo hindu e islâmico. Ao todo, mais de 100 artigos e 43 livros. Entre estes, "Explorations of the highlands of the Brazil, with a full account of the gold and diamond mines", que foi continuado em "Canoeing down 1500 miles of the great river São Francisco, from Sabará to the sea", seguido por "The Aboriginal Indian (Tupy) of Brazil" e "Letters from the Battle-Fields of Paraguay".

Depois da Índia, onde sua promissora carreira como capitão da inteligência militar foi encerrada devido a um relatório demasiado exato sobre um bordel homossexual de Karachi que lhe mandaram investigar; depois de se disfarçar como afegão para explorar os lugares santos do islamismo, proibidos sob pena de morte aos infiéis; depois de ter participado da Guerra da Criméia e de descobrir o lago Tanganyka no coração inexplorado da África enquanto buscava as nascentes do Nilo, seus quatro anos no Brasil como cônsul em Santos bem poderiam ter representado um descanso e um passeio turístico, como sugere o anódino título da tradução de sua primeira brasiliana: "Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho".

Nada disso. Burton não brincava em serviço. O livro é um denso relatório sobre as condições naturais, econômicas, sociais e culturais do Brasil imperial, cheio de inusitadas observações e comparações. Quem mais saberia ver, numa singela festa junina mineira, a versão local do culto fenício a Baal e Moloch e da festa pagã celta de Beltane? Ou o parentesco entre a nossa canjica e o "congee" (mingau de arroz) indiano?

Sem nunca se tornar tedioso, Burton alterna receitas de pratos típicos com experiências de viagem, estatísticas de evolução da economia e da criminalidade, tiradas de humor, vivas descrições da natureza e da paisagem, minuciosas descrições de igrejas barrocas e relatos históricos. Sem esquecer do mais importante: as análises mineralógicas do solo mineiro.

Tratava-se de mostrar potencial dos investimentos no país: seu foco era a Mineração Morro Velho, que ainda hoje rende polpudos dividendos para o capital britânico. Explica que as escandalosas falências de empresas britânicas no Brasil se deviam apenas a seus inescrupulosos fundadores: “nas minas, como nas estradas de ferro, a causa do fracasso está não nos brasileiros, mas em nós”. Trata até de justificar a escravidão, à qual, naturalmente, a Morro Velho não deixava de recorrer.

Nas observações racistas acaba se revelando um vitoriano, ainda que atípico. Analisando as taxas de mortalidade, profetiza que em poucas décadas o fim do tráfico de escravos levaria o negro à extinção nas três Américas. Não soube relacioná-las às condições de vida e trabalho dos escravos. Ainda na época do lançamento desta edição, ex-trabalhadores da Morro Velho vitimados pela silicose continuavam a lutar por indenizações dignas.
comentários(0)comente



1 encontrados | exibindo 1 a 1


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR