spoiler visualizarClara4742 12/09/2024
Citações
?Contam no cais da Bahia que quando morre um homem valente vira estrela no céu.
Assim foi com Zumbi, com Lucas da Feira, com Besouro, todos os negros valentes.Mas nunca se viu um caso de uma mulher, por mais valente que fosse, virar estrela depois de morta.
Algumas, como Rosa Palmeirão, como Maria Cabaçu, viraram santas nos candomblés de caboclo. Nunca nenhuma virou estrela.
Pedro Bala se joga na água. Não pode ficar no trapiche, entre os soluços e as lamentações. Quer acompanhar Dora, quer ir com ela, se reunir com ela nas Terras do Sem Fim de Yemanjá. Nada para sempre. Segue a rota do saveiro do Querido-de-Deus. Nada, nada sempre. Veja Dora na sua frente, Dora, sua esposa, os braços estendidos para ele. Nada até já não ter forças. Boia então, os olhos voltados para as estrelas e a grande lua amarela do céu. Que importa morrer quando se vai em busca da amada, quando o amor nos espera?
O que importa tampouco que os astrônomos afirmem que foi um cometa que passou sobre a Bahia naquela noite? O que Pedro Bala viu foi Dora feita estrela, indo para o céu. Fora mais valente que todas as mulheres, mais valente que Rosa Palmeirão, que Maria Cabaçu. Tão valente que antes de morrer, mesmo sendo uma menina, se dera ao seu amor. Por isso se virou uma estrela no céu. Uma estrela de longa cabeleira loira, uma estrela como nunca teve nenhuma na noite de paz da Bahia.
A felicidade ilumina o rosto de Pedro Bala. Para ele veio também a paz da noite.
Porque agora sabe que ela brilhará para ele entre mil estrelas no céu sem igual da cidade negra.
O saveiro do Querido-de-Deus o recolhe.?
?Mas Deus chamava Pirulito. Nas noites do trapiche o menino ouvia o chamado de Deus. Era uma voz poderosa dentro dele. Uma voz poderosa como a voz do mar, como a voz do vento que corre em torno do casarão. Uma voz que não fala aos seus ouvidos, que fala o seu coração. Uma voz que o chama, que o alegra e o assusta mesmo tempo. Uma voz que exige tudo dele para lhe dar a felicidade a servir. Deus o chama. E o chamado de Deus dentro de Pirulito é poderoso como a voz do vento, como a voz poderosa do mar. Pirulito quer viver para Deus, inteiramente para Deus, uma vida de recolhimento e de penitência, uma vida que o limpe dos pecados, que o torne digno da contemplação de Deus. Deus o chama e Pirulito pensa em sua salvação. Será um penitente, não olhará mais o espetáculo do mundo. Não quer ver nada do que se passa no mundo para ter os olhos suficientemente limpos para poder ver a face de Deus. Porque para aqueles que não têm os olhos completamente limpos de todo pecado, a face de Deus é terrível como o mar enfurecido. Mas para que tenham os olhos e o coração limpos de todo o pecado, a face de Deus é mansa como as ondas do mar numa manhã de sol e de bonança.
Pirulito está marcado por Deus. Mas está marcado também pela vida dos Capitães da Areia. Desiste de sua liberdade, de ver e ouvir o espetáculo do mundo, da marca de aventura dos Capitães da Areia, para ouvir o chamado de Deus. Porque a voz de Deus que fala no seu coração é tão poderosa que não tem comparação. Rezará pelos
Capitães da Areia em sua cela de penitente. Porque tem que ouvir e seguir a voz que o chama. É uma voz que transfigura seu rosto na noite de inverno do trapiche. Como se lá fora fosse a primavera.?
?A revolução chama Pedro Bala como Deus chamava Pirulito nas noites do trapiche.
É uma voz poderosa dentro dele, poderosa como a voz do mar, como a voz do vento, tão poderosa como uma voz sem comparação. Como a voz de um negro que canta num saveiro o samba que Boa-Vida fez:
"Companheiros, chegou a hora..."
A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração. Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. Uma voz que atravessa a cidade, que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da religião ilegal dos negros. Uma voz que vem com o barulho dos bondes onde vão os condutores e motorneiros grevistas. Uma voz que vem do cais, do peito dos estivadores, de João de Adão, de seu pai morrendo num comício, dos marinheiros dos navios, dos saveiristas e dos canoeiros.
Uma voz que vem do grupo que joga a luta da capoeira, que vem dos golpes que o Querido-de-Deus aplica. Uma voz que vem mesmo do padre José Pedro, padre pobre de olhos espantados diante do destino terrível dos Capitães da Areia. Uma voz que vem das filhas-de-santo do candomblé de Don 'Aninha, na noite que a polícia levou Ogum. Voz que vem do trapiche dos Capitães da Areia. Que vem do reformatório e do orfanato. Que vem do ódio do Sem-Pernas se atirando do elevador para não se entregar. Que vem no trem da Leste Brasileira, através do sertão, do grupo de Lampião pedindo justiça para os sertanejos. Que vem de Alberto, o estudante pedindo escolas e liberdade para a cultura. Que vem dos quadros de Professor, onde meninos esfarrapados lutam naquela exposição da rua Chile. Que vem de Boa-Vida e dos malandros da cidade, do bojo dos seus violinos, dos sambas tristes que eles cantam. Uma voz que vem de todos os pobres, do peito de todos os pobres. Uma voz que diz uma bela palavra de solidariedade, de amizade: companheiros. Uma voz que convida para a festa da luta. Que é como um samba.
Alegre de preto, como ressoar dos atabaques nas macumbas. Voz que vem da lembrança de Dora, valente lutadora. Voz que chama Pedro Bala. Como a voz de Deus chamava Pirulito, a voz do ódio o Sem-Pernas, como a voz dos sertanejos chamava Volta Seca para o grupo de Lampião. Voz poderosa como nenhuma outra.
Porque é uma voz que chama para lutar por todos, pelo destino de todos, sem exceção. Voz poderosa como nenhuma outra. Voz que atravessa a cidade e vem de todos os lados. Voz que traz com ela uma festa, que faz o inverno acabar lá fora e ser a primavera. A primavera da luta. Voz que chama Pedro Bala, que o leva para a luta. Voz que vem de todos os peitos esfomeados da cidade, de todos os peitos explorados da cidade. Voz que traz o bem maior do mundo, bem que é igual ao sol, mesmo maior que o sol: a liberdade. A cidade no dia da primavera é deslumbrantemente bela. Uma voz de mulher canta a canção da Bahia. Canção da beleza da Bahia. Cidade negra e velha, sinos de igreja, ruas calçadas de pedra.
Canção da Bahia que uma mulher canta. Dentro de Pedro Bala uma voz o chama: voz que traz para a canção da Bahia, a canção da liberdade. Voz poderosa que o chama. Voz de toda a cidade pobre da Bahia, voz da liberdade. A revolução chama
Pedro Bala.?