svtdrivers 03/05/2024
" a liberdade é como o sol. é o bem do mundo "
Escrever sobre capitães de areia, é consagrar Jorge Amado como brilhante em tudo o que faz. E falar sobre Jorge Amado, é expor os medos e conflitos de uma sociedade sem perspectiva.
Capitães de Areia é muito mais que apenas uma ficção bem desenvolvida por um autor brasileiro. É na verdade um grito de resistência, expondo tudo aquilo que fomos ensinados a não perceber a existência.
Em uma narrativa rica em detalhes, somos convidados a conhecer a história de garotos perdidos pelas ruas da Bahia. Cada um teve uma condição para conhecer o mundo tão cedo, largados ao vento como crianças abandonadas, e de tantos corações inocentes perdidos pelas ruas daquele lugar, nasce uma tentativa de sobreviver: a formação dos Capitães de Areia.
Crianças que tão cedo descobriram as coisas mundanas que a vida podia trazer, também são apresentados a uma realidade onde o crime os domina, como a única forma de encontrarem seu lugar ao sol. Vistos como bandidos, a ordem dos acontecimentos se difunde com os pesares do contexto social brasileiro.
Escrito em 1937, Jorge Amado, integrante do movimento modernista da literatura, era conhecido por usar o tom amargo das críticas à sociedade em suas obras, não mudando os rumos ao criar ?Capitães de Areia?. Nessa mesma época, o Brasil passava pelas mãos de Getúlio Vargas, o presidente populista que na primeira oportunidade tirou de nós o que mais Jorge defendia: A liberdade. Getúlio acabou por ordenar a retirada dos exemplares das ruas de Salvador naquele mesmo ano, os queimando em praça pública em sinal de imposição autoritária.
A obra se torna então um convite à reflexão, de qual lado você está?
Contado em três partes, intituladas cada uma no embalo dos acontecimentos, nossos bravos líderes são apresentados, cada um à sua maneira única de ser. Pedro Bala, o saudoso líder; Pirulito, o menino que sonhava em alcançar a castidade; Professor, o poeta de bom coração; Volta-Seca, o afilhado de Lampião; Gato, o sedutor barato; João Grande, o menino alto e corajoso; Sem-Pernas, o mais amargo de todos; Brandão, de futuro incerto; e Dora, a saudosa mãe, irmã e noiva.
Evidentemente, cada um deles contribuiu para construção dos relatos do descaso da sociedade destacados em cada página do livro. Mesmo escrito há quase noventa anos atrás, Jorge teve o poder de manter ?Capitães de Areia? tão atual quanto no lançamento de sua primeira edição.
O descaso das autoridades, isentando-se de qualquer responsabilidade para qual os meninos, já fica evidente logo nas primeiras páginas. Ao longo do tempo, o descaso vira ódio, e a violência na tentativa de impor uma superioridade abusiva, trava uma batalha de valores dentro do peito de cada um que conhece a obra. A crítica gira em torno do pobre na sociedade, que apenas por sua condição, é marginalizado na primeira oportunidade. Oportunidade essa também, que nunca é conhecida por essa parte da sociedade, já que a repulsa sempre vence.
O direito de ser criança, também é tirado muito cedo da vida dessas pessoas. O contato com a sexualidade, o crime e a violência, tira a única coisa em que eles poderiam buscar conforto na vida: a memória afetiva. Essas crianças crescem sem um lar, um colo e uma família para amar-lhes. Dessa forma, como podem eles saber o que a palavra respeito e amor significa? se desde tão cedo, foram-lhe negados esse conhecer? O personagem Pedro Bala, em um de tantos conflitos internos vividos, se questiona diversas vezes da mesma forma, ? Ele nunca tivera uma ideia perfeita do amor. Que era ele, senão uma criança abandonada nas ruas, que pela força e agilidade e coragem conseguira chefiar o grupo mais valente de meninos abandonados, os Capitães de Areia? Que podia saber do amor??
O machismo, a liberdade, a política e tudo aquilo que não era exposto, agora está na face da sociedade. Capitães de Areia é um convite ao embate de relações e ensinamentos. É entender que a sociedade tem raízes sujas, que quando confrontadas, são vistas como desonra. O que seria desonra? a forma como não gostamos de mostrar as coisas ruins que fazemos todos os dias? ou a tentativa de buscar um lugar livre de amarras e preceitos elitistas, buscando o lugar justo que nos é de direito e nos fora prometido?
Essas crianças apenas queriam o direito de serem cidadãos. Quantos grupos como os Capitães de Areia ainda precisarão ser criados, para que entendamos qual é o nosso dever como parte de uma nação?
De tantos trechos marcantes dessa obra, escolho para trazer a importância dessa obra em nossas escolas e vidas, o depoimento de Sem-pernas, que somos convidados a conhecer no início do livro. ? O que ele queria era felicidade, era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava. Havia, é verdade, a grande liberdade das ruas. Mas havia também o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras boas [ ? ] ele queria uma coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre, que o livrasse da necessidade de rir de todos e rir de tudo. Que o livrasse também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o dominava nas noites de inverno?
Capitães de Areia é uma das obras mais fortes que já tive a oportunidade de conhecer. É um dos ouros da literatura brasileira, um convite à prudência e à mudança.