Reinaldo Rodrig 01/04/2020
Origem e fundamento do ódio brasileiro
O livro de Luiz Eduardo Soares, cientista político, antropólogo e ex-secretário de Segurança Nacional, busca responder a uma pergunta central da nossa atualidade: "Como foi possível a chegada ao poder da extrema direita? De que modo o ódio se vincula à desigualdade que assola o Brasil?". Em certa medida, na minha leitura, esta não é uma obra que tente explicar o Brasil, mas que contribui bastante nesse debate.
A tese central de Soares é que o Brasil é atravessado por uma grande ambiguidade e ambivalência que nunca se resolveram dialeticamente, mas sim, ao contrário, se tornaram traço distintivo da sociedade brasileira. É o que explica a nossa história com a escravidão, que conviveu "pacificamente" com uma nação de ideologia liberal que, em tese, defende a liberdade humana; explica também, na prática, por que, à revelia e conveniência das instituições legais, o tráfico africano de escravos ainda foi expressivo décadas após ter sido aprovada, em 1831, a proibição dessa prática.
A lógica racista do século XIX permanece vigente no Brasil atual. A experiência da casa grande e senzala se transportou para a vida dos patrões e patroas, com o (des)tratamento da empregada doméstica e suas condições de trabalho - por que não dizer? - análogas à escravidão. Basta lembrar que muitos prédios ainda possuem quarto de empregada e elevador de serviço e que só no século XXI a empregada recebeu, não sem muita violência psicológica e ameaças de demissão por parte da classe média, direitos trabalhistas.
Os rolezinhos, encontros promovidos por jovens das favelas para se reunirem em shoppings de classe média e ouvirem funk, foram um importante fenômeno tratado pelo autor. Para ele, representara uma ruptura dos limites urbanos estabelecidos entre a elite racista e os favelados e uma reivindicação por espaços dignos de socialização. Essas manifestações não surgiram sem resposta das classes altas, além de restrição de acesso a muitos desses shoppings, com clara distinção de cor dos frequentadores: em 2014, quatro jovens negros, andando pelo Flamengo, foram cercados por 30 motoqueiros; dois foram espancados e um deles foi amarrado a um poste, nu e sangrando, como clara referência aos tempos da escravidão.
A verdade é que o Brasil nunca assimilou nem resolveu culturalmente sua raiz autoritária e escravista, e, por isso, o ódio esteve presente por toda a nossa história. Regimes monárquicos, republicanos e militares caíram e se ergueram por quase dois séculos, mas uma coisa nunca mudou: a elite burguesa se manteve no poder, e o povo assistiu passivamente à sua própria opressão, seja pela pobreza, seja pela polícia, braço do Estado, resolvendo violentamente os conflitos - violência essa que sempre esteve presente nas favelas cariocas.
O povo, na leitura de Soares, nunca assumiu um discurso eu-tu com o Estado, mas sim eu/nós-eles, sendo "eles" uma marca sem consistência ou identificação clara: "Eles", seja quem for, sempre causaram mal, exploraram e subjugaram "nós", sujeitos passivos. Isto até as jornadas de 2013.
Para o autor, esses eventos causaram a ruptura da passividade dos sujeitos e levaram milhões de cidadãos às ruas. Mas romper uma ferida antiga que não foi assimilada devidamente só poderia expor o ódio latente da sociedade brasileira, ódio devidamente canalizado pela mídia para transformar um partido em um inimigo mortal, isto é, o PT. Dessa equação, o resultado foi a ascensão da ultradireita e a chegada de Bolsonaro ao poder, prometendo, com seu jeito grotesco e raivoso, acabar com "eles" e "com tudo isso que está aí", ao mesmo tempo que atende às agendas neoliberais.
Outros temas abordados por "O Brasil e seu duplo" tentam explicar o tempo e o lugar em que nós chegamos: a recorrente desconfiança da população com o poder estatal, resultando nas revoltas do recenseamento brasileiro, no Segundo Reinado, e a da vacina, na Primeira República; o massivo êxodo rural para as cidades e a desestruturação das famílias; a chegada da onda pentecostal e da "Teologia da Prosperidade"; a história do Brasil com o capitalismo autoritário; a lógica da Justiça Brasileira, que transformou a tese "inocente até que se prove o contrário" em "culpado se a acusação foi verossímil"; e alguns mais.
Por vezes foi uma leitura difícil; outras vezes, fluiu muito bem. Luiz Eduardo Soares mobiliza conhecimentos de diversos campos, desde a sociologia, a ciência política e a antropologia até a psicologia, a literatura e a música, para tentar demonstrar a origem e o fundamento do ódio na sociedade brasileira.