O Brasil e seu duplo

O Brasil e seu duplo Luiz Eduardo Soares




Resenhas - O Brasil e seu Duplo


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Felipe 24/02/2020

O Brasil e seu Duplo - Luiz Eduardo Soares
Em O Brasil e seu Duplo, Luiz Eduardo Soares faz algumas ponderações sobre os processos que constituíram a percepção que o brasileiro tem de si próprio e como percebe o outro, oferecendo insights de como essa dinâmica culminará no Brasil hodierno, dominado pela extrema-direita.
Introduzindo reflexões com pares dicotômicos de pronomes, como "nós x eles", o autor revela o distanciamento que o povo sente de um dado objeto por ele criticado, ao referir-se, por exemplo, à classe política. Esse afastamento tem a serventia de eximir-lhe da responsabilidade de ter colocado no poder tais e tais figuras.
Também são feitas algumas considerações sobre junho de 2013, como a direita tomou de assalto seu sentido, naquela ebulição de reivindicações as mais difusas possíveis que se pretendiam “apolíticas” e como essas dinâmicas irão reverberar nos anos seguintes, como o próprio ato de ir às ruas.
São abordados ainda no livro temas como a questão racial no país, a oposição de denominações religiosas e seus impactos sociais e políticos, o papel do fluxo migratório do campo para as cidades, a justiça como ferramenta que se presta aos interesses do grupo dominante.
No capítulo final, Luiz Eduardo Soares compartilha sua visão acerca da turbulenta vida política brasileira pós-junho de 2013 com o Impeachement de Dilma Rousseff e os atores ali envolvidos, o implemento de pautas impopulares perpetrado pelo Presidente interino Michel Temer, a persistência da demonização de um partido político como avatar da corrupção, uma eleição marcada pela divulgação de notícias falsas que beneficiaram um sujeito chucro cujo esvaziamento de conteúdo casa bem com o discurso tão caro a seu rebanho de acabar com “tudo isso que está aí”, esse grande mal que é o Outro.
O Brasil e seu Duplo é um livro necessário porque supre com maestria a carência que sentimos de dar significados ao momento político que estamos passando, com aquela máxima de trazer a lume o passado para compreender o presente e apontar caminhos para o futuro.
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Reinaldo Rodrig 01/04/2020

Origem e fundamento do ódio brasileiro
O livro de Luiz Eduardo Soares, cientista político, antropólogo e ex-secretário de Segurança Nacional, busca responder a uma pergunta central da nossa atualidade: "Como foi possível a chegada ao poder da extrema direita? De que modo o ódio se vincula à desigualdade que assola o Brasil?". Em certa medida, na minha leitura, esta não é uma obra que tente explicar o Brasil, mas que contribui bastante nesse debate.

A tese central de Soares é que o Brasil é atravessado por uma grande ambiguidade e ambivalência que nunca se resolveram dialeticamente, mas sim, ao contrário, se tornaram traço distintivo da sociedade brasileira. É o que explica a nossa história com a escravidão, que conviveu "pacificamente" com uma nação de ideologia liberal que, em tese, defende a liberdade humana; explica também, na prática, por que, à revelia e conveniência das instituições legais, o tráfico africano de escravos ainda foi expressivo décadas após ter sido aprovada, em 1831, a proibição dessa prática.

A lógica racista do século XIX permanece vigente no Brasil atual. A experiência da casa grande e senzala se transportou para a vida dos patrões e patroas, com o (des)tratamento da empregada doméstica e suas condições de trabalho - por que não dizer? - análogas à escravidão. Basta lembrar que muitos prédios ainda possuem quarto de empregada e elevador de serviço e que só no século XXI a empregada recebeu, não sem muita violência psicológica e ameaças de demissão por parte da classe média, direitos trabalhistas.

Os rolezinhos, encontros promovidos por jovens das favelas para se reunirem em shoppings de classe média e ouvirem funk, foram um importante fenômeno tratado pelo autor. Para ele, representara uma ruptura dos limites urbanos estabelecidos entre a elite racista e os favelados e uma reivindicação por espaços dignos de socialização. Essas manifestações não surgiram sem resposta das classes altas, além de restrição de acesso a muitos desses shoppings, com clara distinção de cor dos frequentadores: em 2014, quatro jovens negros, andando pelo Flamengo, foram cercados por 30 motoqueiros; dois foram espancados e um deles foi amarrado a um poste, nu e sangrando, como clara referência aos tempos da escravidão.

A verdade é que o Brasil nunca assimilou nem resolveu culturalmente sua raiz autoritária e escravista, e, por isso, o ódio esteve presente por toda a nossa história. Regimes monárquicos, republicanos e militares caíram e se ergueram por quase dois séculos, mas uma coisa nunca mudou: a elite burguesa se manteve no poder, e o povo assistiu passivamente à sua própria opressão, seja pela pobreza, seja pela polícia, braço do Estado, resolvendo violentamente os conflitos - violência essa que sempre esteve presente nas favelas cariocas.

O povo, na leitura de Soares, nunca assumiu um discurso eu-tu com o Estado, mas sim eu/nós-eles, sendo "eles" uma marca sem consistência ou identificação clara: "Eles", seja quem for, sempre causaram mal, exploraram e subjugaram "nós", sujeitos passivos. Isto até as jornadas de 2013.

Para o autor, esses eventos causaram a ruptura da passividade dos sujeitos e levaram milhões de cidadãos às ruas. Mas romper uma ferida antiga que não foi assimilada devidamente só poderia expor o ódio latente da sociedade brasileira, ódio devidamente canalizado pela mídia para transformar um partido em um inimigo mortal, isto é, o PT. Dessa equação, o resultado foi a ascensão da ultradireita e a chegada de Bolsonaro ao poder, prometendo, com seu jeito grotesco e raivoso, acabar com "eles" e "com tudo isso que está aí", ao mesmo tempo que atende às agendas neoliberais.

Outros temas abordados por "O Brasil e seu duplo" tentam explicar o tempo e o lugar em que nós chegamos: a recorrente desconfiança da população com o poder estatal, resultando nas revoltas do recenseamento brasileiro, no Segundo Reinado, e a da vacina, na Primeira República; o massivo êxodo rural para as cidades e a desestruturação das famílias; a chegada da onda pentecostal e da "Teologia da Prosperidade"; a história do Brasil com o capitalismo autoritário; a lógica da Justiça Brasileira, que transformou a tese "inocente até que se prove o contrário" em "culpado se a acusação foi verossímil"; e alguns mais.

Por vezes foi uma leitura difícil; outras vezes, fluiu muito bem. Luiz Eduardo Soares mobiliza conhecimentos de diversos campos, desde a sociologia, a ciência política e a antropologia até a psicologia, a literatura e a música, para tentar demonstrar a origem e o fundamento do ódio na sociedade brasileira.
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