Dominique 07/09/2010A vida real No dia 12 de junho de 2000, o sequestro do ônibus 174, paralisou a cidade do Rio de Janeiro. O assaltante e sequestrador Sandro do Nascimento foi morto por asfixia dentro do camburão da polícia, logo após ao término da tragédia. Geisa Golçalves, grávida de três meses, foi morta durante a operação da polícia. Por mais incrível que pareça, de acordo, com relatos das vítimas, Sandro estaria blefando para a polícia quando dizia que iria matar a todos do ônibus, pois lá dentro, ele afirmava que não iria ferir a ninguém. Porém, ao tentar balear Sandro, um policial erra o alvo e acerta Geisa. Assustado, Sandro dá dois tiros na vítima. Esse é o término de mais um drama policial carioca, remontado ficcionalmente pela autora Janda Montenegro.
A autora Janda Montenegro reconstitui a cena de momentos antes do sequestro do ônibus. Por onde Sandro passou, o que pensou e como foi sua vida como sobrevivente de um dos episódios mais dramáticos do Rio de Janeiro: a Chacina da Candelária. Sua vida de menino de rua não foi nada fácil, ela deixa claro em uma narrativa crua e direta. Através do olhar de um marginal, de um ser que não existe para a sociedade, temos uma ideia de como eles se formam e quem eles acabam se tornando, mas principalmente, temos uma ideia, de quem somos e por que não fazemos nada para mudar essa realidade.
Mais do que um livro ficcional, Janda Montenegro traz um livro que nos faz refletir o tipo de sociedade em que vivemos, com sua mazelas e toda a sorte de lixos existentes. Desde a comida que jogamos fora aos pequenos luxos que gastamos com nossos bichos de estimação, é abordado, nessa crítica da sociedade.
No livro, um dos "pensamentos" do deliquente, seria sobre as pessoas que tem rosto e os que não possuem rosto. Ou seja, os que possuem rosto são as pessoas que são visíveis para a sociedade, as que tem um poder aquisitivo e uma vida no mínino estável. Por outro lado, as sem-rostos, são os marginais, os bandidos, os pobres, aquelas pessoas que passamos todos os dias na rua e fingimos que não vemos. Essa foi uma das partes mais tocantes para mim, pois ao refletir sobre minhas ações, concluí que eu sou uma das pessoas que ao passar por outra, dita "estranha", abaixa a cabeça, olha para o outro lado e finge que não vê. Afinal, elas são algumas coisa para mim, se não as vejo? É nesse ponto, que a narrativa ataca cruelmente, dizendo que esses seres marginais à sociedade, não são nada além de sombras.
"Mas você não sente nada disso, não tem expressões faciais, até porque não tem face. Você não se importa. Apenas observa. Sabe que tudo isso é uma espécie de mágica, de se falar exatamente as palavras que se quer ouvir. Você sabe disso, porque essas são pessoas que dizem coisas, você, não, não sabe dizê-las, porque não tem voz. Você pede. Pede com os olhos. Mas, para que as pessoas entendam, é necessário olhar para você, e nem sempre elas fazem isso. Na verdade, quase nunca fazem. Você não se importa. Sabe que é difícil olhar para alguém que não existe, quanto mais entender um pedido de alguém que não fala. É difícil, nem mesmo você entende. Talvez, se estivesse do lado de lá do rosto você compreendesse ainda menos do que consegue entender agora. Mas isso são suposições e você não tem o direito de supor, porque quem supõe é porque tem ao menos duas opiniões, duas chances e você não tem nenhuma, nunca teve, nem nunca terá. Para você, é apenas um, quando é. E não é um para que você não tenha dúvidas, não, nada disso. É apenas um, porque um é mais do que suficiente, é mais do que você merece, e é mais do que você conseguirá ter em toda a sua vida."
A frase acima me deixou tão mal, que fiquei sem tocar no livro por duas semanas. Eu não conseguia digerir o que aquelas palavras queriam me dizer, senti-me de mãos atadas e totalmente confrontada com a realidade. Veja bem, eu trabalho em uma região, dita perigosa e rodeada de comunidades (favelas). Meus alunos, a maioria, são de lá, quantos serão como Sandro? Depende de quem que eles não se tornem futuros marginais? Essas questões perpassavam em minha cabeça e cada vez que eu os olhava, via neles, Sandro. A diferença estava clara, no final, ponderei, eles estão em um colégio que faz tudo para que eles não se tornem mais um criminoso. Uma escola que além de oferecer comida de qualidade, professores qualificados e uma infra-estrutura de primeiro mundo, principalmente, se preocupa com o futuro deles. Quem eles tem, então? Eu respondo. A escola. E ela está fazendo sua parte.
Enfim, com uma narrativa rápida e crua, Janda desmistifica o lado negro da sociedade e suas mazelas. "Antes do 174" é um livro que vale a pena ter na sua estante.
Veja mais: http://livrosfilmesemusicas.blogspot.com/2010/09/antes-do-174.html