Arsenio Meira 31/12/2013
Feliz Ano Novo Michael K. Para sempre.
J. M. Coetzee tem um estilo seco, contido e profundo ao mesmo tempo. Um Graciliano Ramos de uma outra era. Sua sobriedade e economia fazem-no certeiro no que interessa: revelar o íntimo de um personagem, quase sempre em queda ou a caminho de um encontro consigo mesmo. É assim no brilhante e tocante romance "Vida e Época de Michael K."
A vida não sorriu para o nosso Michael, e nem por isso ele ficou prostrado "no trono de um apartamento/Com a boca escancarada/Cheia de dentes/Esperando a morte chegar", conforme ensinou o nosso Raul Seixas, que Deus o tenha.
Ao saber que sua mãe ficou doente, e expressou o desejo de passar seus últimos dias na cidadezinha do interior onde nasceu, e cansado de esperar pelo passe obrigatório para poder viajar, K resolveu levá-la num carrinho de mão improvisado. O personagem não pestanejou. Um segundo sequer. E, assim, o nosso marcante Michael K pôde apreender os reflexos e as dimensões do drama que inundava o seu país, com jorros de infâmia e barbaridades.
Aos poucos, durante a viagem, o leitor é tomado pela descoberta da situação da África do Sul, em meio ao caos, um território dominado pela injustiça, ódio, incoerência; os ânimos de seus "cidadãos" distorcidos, na mais caridosa das hipóteses. É este um dos grandes méritos de J.M. Coetzee: sua prosa no traz o cenário da África do Sul de uma maneira bastante particular, que se dá a conhecer através do olhar de Michael K; dificuldades que ele encontra em sua trajetória, graças a sua santa persistência. Assim, o conflito em si, não desponta com foguetes literários. A gente percebe que ele existe, sabe que algo horrível está acontecendo, mas essa percepção vem de quem não está diretamente envolvido com o conflito.
A denúncia a esta situação de caos, e inquidades é clara, mas bastante sutil. Desde o início, o livro possui uma postura política, mas isto só se torna realmente explícito quando K encontra Robert num campo de concentração. Robert tem uma cruel noção do mundo em que vive, é ele quem dá nome aos burros, esclarece o que está se passando, conta suas amargas experiências e acaba exercendo influência sobre K e sobre nós, leitores. Robert é o porta-voz dos oprimidos, um excelente orador, dono de frases reveladoras e impactantes que merecem ser sublinhadas. É um personagem sólido, capaz de se mostrar quem é, através de uma única palavra.
Michael K, por sua vez, é um personagem intrigante. Ele se apresenta como alguém normal, às vezes ingênuo, com atitudes conscientes e uma postura crítica, por conta da sua condição social. Confuso e atordoado, K age de maneira não-convencional, toma atitudes que seriam impensáveis, mesmo que estas sejam óbvias, compreensivas e, em muitos casos, incontornáveis. Seu raciocínio é simples, infantil até, mas paradoxalmente, é capaz de tecer raciocínios que incidem diretamente sobre as questões, seus sentimentos e seus impulsos; enfim, ele termina colocando o dedo na ferida sem complicar e se perder nas explicações. Sua simplicidade chega a lembrar o texto de Bukowski e John Fante.
Já na segunda parte, quando um outro personagem assume a narração, K é visto como um bobo, um débil mental. É bem verdade que, na primeira parte, podemos vê-lo usando sua feição para despistar que alguém descubra sua capacidade de pensar, mas na segunda parte, a discórdia é instalada, K em alguns momentos parece mesmo ter perdido o sentido das coisas.
O jeito introvertido de Michael K é a maior arma contra os abusos de poder. Mesmo sem lutar, sem participar diretamente da guerra, mesmo sem os discursos inflamáveis de Robert, K age sem pretensões, sempre em razão do que ele sente, o que acaba despertando as pessoas à sua volta para a irracionalidade do mundo. Michael K é uma espécie de Mahatma Gandhi, que vence e transforma os absurdos do seu mundo através da insistência, mesmo que esta seja lenta e dolorosa.
Um personagem inesquecível. Um grande romance. Uma releitura para fechar o ano com o olhar iluminado de Michael K.