Che 20/06/2017
FORGET IT GORDON, IT'S GOTHAM CITY
Foi um amigo quem esteve na origem do fato de eu achar (agora cada vez menos) o artista estadunidense Frank Miller superestimado, ainda na época do Orkut, há mais de dez anos, quando soltou a cascata sobre 'a única HQ que chega perto de Watchmen'. "Cavaleiro das Trevas" - a tal HQ apontada com essa credencial - tinha um roteiro bom e reviravoltas até hoje celebradas, a maior dela envolvendo o Superman, mas padecia de um traço feio, com aquele Batman 'gordo', de autoria do próprio Miller.
Felizmente, aqui Miller declinou dessa tarefa e a deixou por conta do muito mais competente (nessa função) David Mazucchelli, com quem já tinha feito uma bem sucedida parceria na genial, arrebatadora e inesquecível "A Queda de Murdock", que li faz apenas algumas semanas e resenhei aqui no nerdices, alguns comentários acima deste. O traço de Mazucchelli pode ser definido, em uma palavra, como elegante. Soube explorar bem o recurso das sombras (o que cai como uma luva para o conceito do 'homem-morcego') e o 'design' em si dos personagens e do cenário é ainda hoje bonito e cativante, mil vezes melhor que aquela geringonça do "Cavaleiro das Trevas".
Mas sou novamente forçado a reconhecer que o gênio por trás da obra, mais uma vez pra minha surpresa (embora dessa vez já não tanto, após o choque que foi ler Daredevil: Born Again), é o próprio Frank Miller. As frases em off, os diálogos, o próprio arco dramático da origem do morcegão é contado de modo primoroso. Ele teve a perspicácia de se focar pouco na infância do herói, nos poupando de ler pela milésia vez a morte dos pais de Bruce Wayne, o qual mais uma vez se reafirma como raríssimo - talvez único - caso de personagem podre de rico que não me causa antipatia imediata (bem diferente, por exemplo, de um Tony Stark).
Ainda sobre o roteiro, o melhor de tudo é que se privaram de risíveis vilões 'superpoderosos' e se focaram em coadjuvantes de peso, como Selina (aqui insinuada como ex-prostituta) e, principalmente, o então tenente Gordon, indubitavelmente o melhor personagem da HQ. É pelos olhos dele que vamos descobrindo a origem do Batman, mas não fica só nisso. A ênfase é nos personagens 'pé no chão', sem nenhuma pegada fantasiosa, gente como a gente, de carne e osso. Isso dá um tom de film-noir e moralmente dúbio até para o próprio Gordon, o verdadeiro protagonista da graphic novel, aqui em crise conjugal e sofrendo as tentações de outro rabo de saia. E nessa selva de pedras onde (quase) nenhuma alma não está à venda, um mísero deslize do incorruptível tenente pode ser a deixa para uma tremenda dor de cabeça.
Enfim, só resta de novo tirar o chapéu para a obra e para Miller em especial. Até poderia fazer ressalvas (a historinha de salvar o gato é infantil e boba), mas são tão mínimas perto do todo que não vale a pena. A melhor HQ do morcego que li até o momento, superando "O Longo Dia das Bruxas", que até então ocupava esse posto. Se você não conhece ou nunca leu nada do Batman, "Ano Um" é um ótimo ponto pra começar.