Raphael 07/07/2015Jostein Gaarder talvez seja meu escritor preferido. O projeto didático que o autor apresentou com "Mundo de Sofia" não se esgotou ali. As principais questões existenciais da filosofia percorrem todos os seus outros livros. Com "Maya" não foi diferente. É muito interessante a forma amistosa como ele nos insere em pensamentos tão inquietantes (ou que deveriam inquietar). Acho que é por isso que eu gosto tanto dele. O livro bom, na minha opinião, é aquele que acompanha o leitor por um longo período (ou a vida toda) após a leitura. E isso acontece com os livros do Jostein Gaarder. Após ter lido "O dia do Curinga", por exemplo, nunca mais olhei para um aquário da mesma maneira. Aquele peixinho multicolorido e a "bebida de todos os sabores" vão me acompanhar para o resto da vida. E isso é muito bom!
O mais importante, no entanto, são as profundas reflexões filosóficas que o autor nos proporciona (até mesmo para aqueles que não são do ramo - aplausos para sua didática) e este é o ponto mais importante em "Maya". Se você ainda não leu, e tiver a oportunidade, parta sempre da premissa que a história contada no livro é apenas o pano de fundo para o autor fazer você refletir filosoficamente. E de uma forma bem direta, tipo "de onde viemos? de onde veio o mundo?". Este é um erro que já vi pessoas cometerem ao falarem que "Maya" é chato. Será que estavam aptas para fazer o julgamento? Por isso, eu particularmente evito ao máximo falar mal de algum livro. Talvez seja o leitor que não esteja preparado para aquilo. E eu não to falando apenas intelectualmente, as vezes nos foge algo mais básico ainda, tipo "qual é a desse autor?".
Em "Maya", essas questões existenciais são refletidas sob o ponto de vista biológico. Frank Andersen, o personagem central, é biólogo evolutivo e, através dele, o autor nos mostra em que pé está sua ciência na tarefa de desvendar as origens do homem. Frank e outras dez pessoas encontram-se numa ilha turística (alguns a passeio outros a trabalho) e "o pano de fundo" se desenrola ali. Aqui, neste livro, os personagens mais marcantes são Ana e José, um casal misterioso que vive trocando reflexões filosóficas e não se separam nunca. É muito legal notar o entrosamento entre este casal e confesso que fiquei chateado por nunca ter tido uma experiência parecida (não é apenas um casal que se dá bem, é um entrosamento, digamos, filosófico! Bem mais profundo).
Frank observa (escondido) o comportamento do casal e fica intrigado com a peculiaridade. No mais, Ana lhe causa uma profunda inquietação: seu rosto é muito familiar. No decorrer da narrativa, ele descobre que a moça é idêntica a uma pintura famosa de Goya, chamada "la maja desnuda", daí (dentre outros motivos) o título do livro. Surge, aí, o mistério que permeia a história: como pode um quadro pintado há 200 anos mostrar o rosto de Ana, moça jovem e bonita que ainda perambula pelo mundo? Confesso que me enrolei na resposta do autor mas, como salientado, a história é apenas o pano de fundo.
No mais, há ali um draminha familiar que Frank vem enfrentando e o clímax, devo confessar, surpreende um pouco e chega até a comover (há uma reviravolta). John Spooke, um personagem meio secundário, acaba se tornando o principal e sua história meio que me causou pena. O enredo, em suma, é basicamente isso: dez desconhecidos se relacionando numa ilha. E Gaarder vai propondo reflexões em cima deste contexto. Por fim, pra fechar com chave de ouro, o autor nos apresenta um manifesto com as principais sentenças filosóficas proferidas pelo simpático casal Ana e José. Pra não ficar muito grande isso aqui, mencionarei apenas duas (há cinquenta e duas!).
"(...) Alguém pergunta: quão grande é a probabilidade que algo tem de nascer do nada? Ou, ao contrário, claro: que probabilidade existe de que algo tenha sempre existido? Ou, não obstante: pode-se calcular a possibilidade de que a matéria cósmica de repente, uma bela manhã, acorde consciente de si? (...)"
"(...) Não é de se estranhar que o Criador, segundo dizem, tenha retrocedido um passo ou dois quando modelou o homem, com terra que pegou do chão, soprando-lhe vida pelo nariz para transformá-lo numa criatura viva. O mais surpreendente desse acontecimento foi a falta de espanto de Adão (...)".
Por derradeiro, não poderia deixar de mencionar alguns presentes que Jostein Gaarder me deu pra que eu guardasse para sempre: "(...) Com a simples existência do mundo, os limites do improvável já foram superados. Se o mundo existe, por que não haveria de existir outro mundo depois? [da morte] (...)". Sobre quem veio antes, o ovo ou a galinha: "(...) O que vemos muito distante no espaço, isto é, bilhões de anos-luz para trás na história do universo, é ao mesmo tempo a causa dos acontecimentos do momento presente. O universo é ao mesmo tempo o ovo e a galinha (...)". Os aplausos para o big bang só vieram alguns bilhões de anos depois. Estamos vivendo no "estado fetal da razão". Viva. Obrigado Jostein Gaarder.