Flavinha 24/09/2021As heranças da escravização de negros nos EUAOs EUA têm uma tradição clássica de escrita autobiográfica, essa tradição permitiu ao longo da história daquele país registros importantes sobre a vida de sua população, entre ela a de escravizados como Frederik Douglas e Harriet Ann Jacobs. Lembrando que ambos são figuras transgressoras que romperam com as normas vigentes à época e aprenderam a ler e a escrever.
Em “Incidentes na vida de uma menina escrava”, com o pseudônimo de Linda, Harriet Ann Jacobs escreve um triste relato das violências e das amarguras vividas por ela sob o julgo da escravidão na Carolina do Sul. Na primeira infância, protegida pelos pais, que eram escravos de ganho, diz nunca ter sonhado em ser uma mercadoria, após a morte repentina dos dois passa a ser cuidada pela avó materna e a trabalhar de fato como escrava na propriedade do dr. Flint, seu maior perseguidor e algoz durante toda a vida.
Linda tem dois filhos com um homem livre, na sua ingenuidade pensa estar ao menos fazendo uma escolha e experimentando a liberdade, porém continua sendo perseguida e tendo que fugir do proprietário branco. Linda chega a ficar escondida por sete anos em um cubículo entre o forro e o telhado da casa de sua avó, sem poder levantar ou fazer barulho, enquanto via seus filhos crescerem aos cuidados da avó e de familiares. Enfim, quando ela consegue sucesso na tão esperada fuga para Nova York passa a viver longe dos filhos, revelando que os negros não eram realmente livres nos Estados do Norte e estavam à revelia da Lei do Escravo Fugido. Ao final, com apoio de uma família branca para a qual trabalha torna-se livre e pode reunir sua família. Harriet Ann Jacobs, no entanto, defende que comprar a sua alforria contrariava seus princípios, pois não era justo ter que pagar por algo que era de direito de qualquer ser humano, a própria liberdade.
O livro é permeado da realidade de mulheres negras que foram privadas ao longo da história de exercerem a maternidade, há diversos relatos de separação, de morte, de sofrimento e de busca por filhos vendidos. Uma das que mais me entristeceram foi a da tia Nancy, explorada pela senhora branca, que teve oito abortos, nenhum filho vivo, já que trabalhava como faz-tudo na casa grande, além de cuidar dos sinhozinhos e sinhazinhas. Esse episódio me lembrou o romance Ponciá Vicência, de Conceição Evaristo.
Trechos do livro:
“Nenhuma escrita pode fazer uma descrição adequada da corrupção absolutamente abrangente que a escravidão produz. A menina escreva é criada numa atmosfera de licenciosidade e medo. O açoite e as palavras imundas de seu senhor e dos filhos dele são seus professores. Quando ela chega aos quatorze ou quinze anos, seu proprietário, ou o feitor, ou talvez ambos, começam a suborná-la com presentes. Se isso não basta para que realizem suas intenções, ela é açoitada ou privada de alimento até que se submeta à vontade deles.”
“Meu cérebro gritou ao ler essas linhas. Um cavalheiro próximo a mim disse: ‘É verdade, eu vi o recibo de venda.’ ‘O recibo de venda!’. Essas palavras me atingiram feito um golpe. Então eu estava vendida, finalmente! Um ser humano sendo vendido na cidade livre de Nova York! O recibo de venda está registrado, e futuras gerações vão aprender com ele que mulheres eram artigo de tráfico em Nova York no final do século XIX na religião cristã. No futuro, isso pode se revelar um documento útil a antiquários que buscam medir o progresso da civilização nos Estados Unidos. Sei muito bem qual é o valor daquele pedaço de papel, mas, por mais que ame a liberdade, não gosto de examinar aquele recibo.”