Arsenio Meira 11/07/2013
OS SERTÕES FORAM ALÉM
O húngaro Sándor Márai era um escritor respeitado em seu país quando foi para o exílio por não suportar a repressão e a censura comunistas.
Morava na Europa quando "Os sertões", traduzido para o inglês por um professor da Universidade de Chicago, caiu em suas mãos. Ele penou para entender o que estava lendo, até que na terceira tentativa engrenou e levou a leitura até o final.
Quando terminou era um homem perturbado. E então começou a escrever "Veredicto em Canudos", pois sentiu a necessidade (era algo mais forte do que desejo, vontade ou impulso) de escrever sobre o que poderia estar na obra de Euclides da Cunha, mas não estava.Sobre coisas que poderiam ter acontecido no acampamento dos militares no sertão baiano.
E assim, um húngaro exilado nos Estados Unidos, que havia acabado de ler um livro sobre fatos que aconteceram no sertão nordestino 70 anos antes, escreveu um livro intenso e inquietador a partir do que tinha lido. Detalhe: sem nunca ter pisado no Brasil. "Os Sertões", portanto, foram muito além, e superaram a guerra fria, a histeria coletiva e maniqueísta da época.
Portanto, a história deste livro já renderia um livro.
Márai nunca viu de perto a caatinga ou o modo de viver dos sertanejos. Suas descrições das migrações em época de seca, do desespero de homens e animais, parecem ser de quem conheceu o fenômeno in loco.
Mas esse não é um livro sobre o Brasil, sobre a seca ou sobre a dureza da vida em condições extremas. É um livro sobre a possibilidade de construir e viver a utopia, escrito na época em que estudantes tentavam fazer dos muros e ruas de Paris lugares utópicos, berço de uma sociedade diferente e igualitária.
A personagem nuclear do romance é uma europeia, madura e bem nascida, plantada em Canudos pela imaginação de Márai. Ela faz a ponte entre a vila fundada por Antônio Conselheiro e os sonhos compartilhados por boa parte da humanidade, no final dos anos 60.
A mulher, por sua vez, foi parar no sertão baiano tentando encontrar o marido, um médico rico e cheio de pacientes que larga tudo: a dita esposa, casa, amigos, conforto, status e dinheiro para tentar sua viver sua utopia secreta e nunca revelada.
Ela não encontra o homem, mas rende-se a uma noção de felicidade que não cabia em seu mundo.
Márai, no romance, discorre sobre a possibilidade de viver uma vida completamente diferente daquela que vivemos, quem sabe refluindo para sua condição de exilado, o sofrimento imposto às pessoas e suas famílias que não aceitam o julgo brutal dos "regimes políticos", que, quando muito, descambam para genocídio, um painel de tragédias cotidianas e incessantes.
Alguns parágrafos acima escrevi que tinha lido uma narrativa sobre a possibilidade de construir e viver a utopia. Mais apropriado acrescentar a palavra impossibilidade na frase. Acrescentar apenas, não substituir.
Impossibilidade porque, apesar dela e dos outros seguidores do beato, terem levado ao extremo a capacidade de sonhar e à dignidade sem rendição, é ao comandante das tropas que destruíram o espaço do sonho que ela conta sua história.
Impossibilidade porque em Canudos existia o Beatinho, homem de confiança do Conselheiro, e que sabia de tudo e de todos. A onipresença desse jagunço nos remete à Tcheka bolchevique (uma espécie de KGB local, um órgão policialesco nefasto, uma vez que a Tchecoslováquia era um dos satélites da União Soviética) que sob a missão de proteger o sonho, acabaria por ajudar a destrui-lo.
Sándor Márai estava prestes a completar 89 anos quando se matou na Califórnia, em 1989.
Poeta, dramaturgo e romancista era um nome consagrado na Hungria quando os comunistas decidiram que o escritor precisava ser esquecido, silenciado. Ele optou pelo exílio, lógico.
Como não era (ainda não é) tão fácil traduzir do seu idioma pátrio para outros idiomas ocidentais, ele acabou se tornando quase um “escritor secreto”, lido e admirado quase que exclusivamente entre migrantes húngaros espalhados pelo mundo.
A globalização, algoz das utopias, acabou - ironicamente - possibilitando edições de boa parte dos seus quase 60 livros em vários países.