@garotadeleituras 24/06/2017
A inocência e a leveza ausentes na infância
“Eu me vejo na minha infância como uma colmeia, aonde várias pessoas simples, insignificantes, vinham, como abelhas, trazer o mel de seu conhecimento e das reflexões sobre a vida, enriquecendo generosamente o meu espírito cada um como podia. Muitas vezes acontecia de esse mel ser sujo e amargo, mas todo conhecimento era, mesmo assim, um mel”. (p. 161)
Infância é o primeiro livro de uma trilogia autobiográfica do aclamado autor russo Gorki. Representado pelo pequeno Aleksiei, que ainda na tenra idade perde o pai e pouco depois a mãe o abandona aos cuidados da família, deixando aos cuidados da carinhosa avó e o domínio opressivo avô. De fato o que o leitor encontrará desde as primeiras páginas é a visão infantil de um garoto sobre a visão do ambiente doméstico e o mundo que lhe rodeia, mas engana-se aquele que acredita que as linhas estarão impregnadas da leveza e inocência típica da idade. A família de Aleksiei é empobrecida (quem ler literatura russa sabe que pobreza é pobreza mesmo), sem estrutura alguma, inclusive emocional e caminha para a penúria completa conforme se aproxima das páginas finais. Sabe aquele ditado que “pior não pode ficar? Gorki está aqui para provar o contrário.
Aleksiei encontra na figura da avó alguém que o encorajava diante de tantas mazelas e desilusões; ele a definia como a pessoa mais chegada do seu coração, a amiga de toda a vida. O amor desinteressado da avó pela vida foi o combustível para tornar-lo resistente para suportar o ambiente difícil que o rodeava. E veja bem, essa senhora, meiga e carinhosa, que muito acreditava nos desígnios de Deus era a matriarca de uma família que vivia em guerra, pois seus dois filhos viviam brigando pela herança, apanhava do marido irascível, suportava as privações financeiras e ainda sim, contava bonitas estórias para acalentar o neto antes de dormir.
“Havia muita coisa interessante em casa, muita coisa engraçada, mas às vezes uma tristeza irreversível me sufocava. como se algo opressivo me enchesse de todo, e durante muito tempo eu tinha a impressão de viver num fosso escuro e fundo, sem visão, sem audição e sem nenhum outro sentido, cego e semimorto... (p.141)
Aleksiei conta com vividos detalhes sentimentais, a primeira surra, o desagrado do avô e seus métodos de ensino, o coração desbotado e ferido sempre que sua avó era vítima de agressão, sua curiosidade pelas pessoas estranhas e o que lhe rodeava, suas primeiras amizades, suas carências maternas, as conversas interessantes com sua vozinha, suas percepções de Deus através da relação dos avós com a divindade, suas estripulias e os castigos advindos das suas maquinações, seu aprendizado e dificuldades na escola, a morte da mãe após um matrimônio infeliz, a miséria que o obrigou a catar lixo para comprar comida e como muitas vezes foi xingado pelos colegas e inclusive alguns professores porque não tinha determinado livro. Aleksiei era uma criança prematuramente embrutecida pela vida, que via nas travessuras uma forma de extravasar suas inquietudes, e na maioria das vezes pagava caro por tal comportamento. O conjunto de fatores que o rodeava (miséria humana e social) foi responsável por esculpir uma visão desbotada, conforme ele mesmo afirmou:
"O vivo e palpitante arco-íris daqueles sentimentos apelidados de amor se desbotava na minha alma, inflamavam-se com frequência cada vez maior as tóxicas fagulhas azuis da raiva contra tudo, um sentimento de desgosto pesado ardia em fogo brando no coração, a consciência da solidão em meio a todo aquele absurdo cinzento e sem vida." (p.260)
Se muitas vezes, a marginalização, a vida ruim e o desespero o acompanhou, Aleksiei se sobressaiu com a melhor arma possível, encontrando motivos para rir de toda desgraça. O jovem Gorki muito cedo percebeu a maldade que existia ao redor; a tristeza e a desgraça são coadjuvantes ativos na narrativa. "Infância" me recordou duas outras leituras: Grandes esperanças (Charles Dickens) com seu orfão Pip e “Os malavoglia” do Giovanni Verga, com seus protagonistas já vencidos pela vida. Muito impressiona a tenacidade da criança para avaliar pessoas e coisas em meio a tanta desgraça; o mias na narrativa é o modo truculento das relações humanas muito mais que a pobreza em si, sendo impossível não refletir como tudo isso influenciou o Gorki adulto. Apesar de ser uma leitura extremamente triste, entrou fácil para a lista de melhores livros da vida. E mesmo na última linha, o leitor não encontrará móvitos para sorrir:
" -Bem Leksiei, você não é medalha para ficar pendurado no meu pescoço, aqui não tem lugar para você, então vá ganhar o seu pão e ser gente... E eu fui ser gente." (p.292)
Leitura indispensável!