Em 1807, Thomas Bowdler (1754-1825) publicou, em três volumes, seu "The Family Shakespeare", no qual reescreveu as peças do First Folio de 1623, expurgadas de todas as palavras e passagens que "não podiam ser lidas em voz alta na família". Sua implacável tesoura cortou muitos trechos, por exemplo, de Romeu e Julieta e de A megera domada, por considerá-los obscenos. Era uma época de grandes pruridos puritanos, quando as pernas do piano eram cobertas, para não provocar maus pensamentos, e quando circulava na Inglaterra um popular manual de etiqueta que recomendava que as pessoas que tinham biblioteca separassem cuidadosamente, em armários diferentes, livros escritos por homens e escritos por mulheres. Estranhamente, a única peça, dentre as trinta e seis, que não ficou "purificada" foi Medida por medida, uma peça que Bowdler considerou tão obscena, que ficaria totalmente dilacerada e incompreensível se a submetesse a sua tesoura. Precedeu-a, porém, de alguns parágrafos em que recomendava pais e educadores a terem extremo cuidado para que seus filhos e alunos não lessem a peça às escondidas. O leitor que faça seu juízo sobre a imoralidade de Medida por medida, mais de duzentos anos após a rigorosa censura de Bowdler, nesta época em que a nudez e a pornografia invadem nossas casas em todas as formas midiáticas.
Não há dúvida de que há ditas 'obscenidades' na peça. Cláudio, por exemplo, engravida a noiva, transgressão que Viena punia com a pena de morte, mas talvez devamos mudar nosso foco para o de Eliana Cardoso que, em recente artigo publicado no periódico Valor, em 15 de maio de 2015, vê na corrupção do poder, tão nossa conhecida, a maior obscenidade de "Medida por medida". Aliás, para ela, "A corrupção moderna inspira mais repugnância do que a de Viena em Medida por medida". Hoje convivemos quase tão tranquilamente com a corrupção e a violência como com o futebol e as novelas televisivas; a palavra 'justiça', central em Medida por medida, já perdeu entre nós sua força. Tudo está banalizado: a morte, o sexo, a corrupção, a injustiça. O tecido social se rompe cada vez mais, os valores se invertem e acabamos dando razão ao Duque Vicêncio: "o bebê vai dar uma surra na babá".
Drama / Literatura Estrangeira