Navios Cargueiros

Navios Cargueiros Marcos de Andrade Filho


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CALMARIA E TORMENTA

Calmaria e tormenta. São estas as experiências que vivenciamos ao embarcarmos nos Navios Cargueiros de Marcos de Andrade Filho. Com total domínio do leme e das coordenadas gramaticais, o poeta navega na contracorrente e nos mostra que os sinais de pontuação vêm para nos libertar, para nos trazer possibilidades de fazer com que a língua corra solta sobre as águas da leitura, da escrita, da poesia. As vírgulas e a libertinagem estética funcionam como ventos que criam figuras nas nuvens situadas no sentido oposto das ondas formadas e deformadas também pelo vento, a fim de gerar movimentos e impulsionar o navio carregado de versos livres, flutuantes, rodopiantes e transbordantes em meio a uma enfermidade, nos fazendo refletir não sobre uma vida inteira que poderia ter sido, mas que é.

Sim. Marcos de Andrade é Filho do simbol, surreal, modern, concret e de vários outros -ismos que deram à luz um poeta cuja impressão digital é deixada em cada página através de sinais (tipo)gráficos e de sentimentos (des)encontrados em um eu lírico posicionado na proa, no convés e na popa de um navio que ora parece estar à deriva, ora indica aproximar-se do porto, porém nunca ancora.

Iaranda Barbosa

Professora do Departamento de Letras da UFPE

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FENDA TEMPORAL
…foi um susto de sinapses e um contêiner no convés. Entre março e abril de 2017, eu estava numa sala de aula, conversando com meus alunos sobre a obra de Graciliano Ramos. Em meio àquela que deveria ser mais uma aula de semeadura do prazer pela palavra feita Verbo, minha língua pesou. Sala de jaula. Os alunos notaram. Enjaulado. Temi ser algo gravíssimo. Recitei mentalmente alguns versos que sabia de cor em segundos de fração: Pessoa, Bandeira, Drummond, Cabral… Tão monossilábico quanto os personagens silentes do romance sobre o qual falava, silenciei. Silenciei, mas, por dentro, grunhia como um cão que leva um tiro…

; a visão embaçou. Impressões tive de Siegfried e Odara, sol nascente no porto: Wagner e Caetano seguidos de um zumbido. Ferrão de abelha no tímpano. Beethoven no Rio São Francisco. Falas de Riobaldo me diziam que era para fazer a travessia tortuosa do ser, tão grande como o rio. Senti um frio augusto na espinha. Precisei concluir a aula minutos antes do fim. Travessia? Só a da rua, onde o diabo está, para permanecer metade de um mês internado no Real Hospital Português do Recife…

; exames buscavam um possível sinal de epilepsia. Vi telas de renascenças. Vanitas. Éramos eu e o livro do Eclesiastes de mim mesmo. A junta de neurologistas do Hospital veio saber pela milésima vez o que eu havia experienciado. Eu lhes disse: “Machado de Assis num banco de praça sem Carolina, doutores. É como se eu fosse navio cargueiro atracado no Porto do Tânger e a mão psicodélica dos beatnicks me põe no convés do cérebro um contêiner imenso de delírio. Nada começa novo, doutores; o princípio é vírgula ou são reticências de Deus…”. Era claro que o vento havia destravado algo. Eu, trabalhador que virava carvão todo dia em nome do Verbo poético, sentia meu crânio deformar enquanto, no planalto, deformavam meu direito de queimar como bom carvão. Minha pátria, golpeada na cabeça, convulsionava comigo. Cabeça de Estêvão: corpo de pedra. Cabeça de Joana: corpo flamígero.

; era, agora, um navio cargueiro adernando no cais. E meu bisavô não estava na estiva e nada poderia fazer, pois não eram os tempos do lendário Rosendo da Gravata no Porto do Recife. Meu corpo se musificava em meio aos rugidos dos habitantes de meu cérebro. Leões… Nações inteiras…

; os médicos voltaram dias depois para me dizer que era uma epilepsia focal inespecífica e me deram alta…

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…era tarde: praticamente todo este livro já havia sido escrito em dez dias naquela cama. Enfermidades… Infimidades… Era uma poesia convulsa; necessária, sabe? Letras e signos colapsados em imagens e libera-sons de áurea e tremores de carne: intimidades…

Marcos de Andrade Filho

Porto do Recife, 02 de fevereiro de 2021

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Literatura Brasileira / Poemas, poesias

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