O movimento Hare Krishna no Brasil

O Vaiṣṇavismo é uma das vibrantes e plurais vertentes dentre as religiosidades contemporâneas do subcontinente indiano. Ele constitui-se em torno de Viṣṇu (e/ou seus avatāras), tido por divindade absoluta, personalidade suprema e fundamento último do Real. Suas fontes textuais compreendem as duas grandes matrizes do que denominamos “hinduísmo”, viz., os Vedas e os Tantras, além das narrativas dos Purāṇas, dos Épicos (Rāmāyaṇa e Mahābhārata), e da literatura kāvya, dentre os quais se destacam o Bhāgavata Purāṇa, o Bhagavad Gītā e o Gītā Govinda, respectivamente. Esse enraizamento matricial é singularmente cantado no Bhāgavata Purāṇa quando Kṛṣṇa (Viṣṇu/avatāra), respondendo a indagação de seu devoto Śrī Uddhava sobre os métodos de propiciação devocional conducentes à Libertação (vimocana), profere as seguintes palavras: Que eu seja devidamente adorado por meio de um dos seguintes três métodos sacrificiais, a ser escolhido [pelo devoto]: o védico (vaidika), o tântrico (tāntrika) e o misto (miśra) . Gestado no binômio matricial Vedas-Tantras, o Vaiṣṇavismo desdobra-se numa pluralidade extraordinária de religiosidades que estruturam e dinamizam outras tantas identidades comunitárias, seus símbolos, rituais, códigos morais e instâncias de aprofundamento iniciático com suas onto-teo-filosofias e devocionalidades soteriológicas. Amparadas em doutrinas que vão da não dualidade à dualidade, passando por outras tantas formas de dualidade e não dualidade simultâneas, essas onto-teo-filosofias consagram Viṣṇu (e/ou seus avatāras) como princípio de unidade cósmica, correlato da noção ontológica de Brahman. Numa combinação fecunda entre a tradição védica dos Upaniṣads ou Vedānta e a tradição tântrica do Pāñcarātra, elas desenvolvem metodologias cognitivas e devocionais conducentes à união mística ou participação amorosa em Viṣṇu. Em que pese a ênfase do Ocidente na escola Kevalādvaita (Não dualidade Apenas) de Śaṅkarācārya, cinco das seis principais escolas do Vedānta tradicionalmente elencadas – à exceção justamente da escola Kevalādvaita – constituem a fundação doutrinária não apenas das mais importantes religiosidades de orientação Vaiṣṇava, mas também de outras religiosidades monoteístas/monistas como o Śaivismo e o Śaktismo. Contrapondo-se à não dualidade radical proposta por Śaṅkarācārya, cuja consequência seria a atribuição de um caráter ilusório à pluralidade do universo, essas cinco orientações hermenêuticas (sampradāyas) propõem uma reconciliação entre a dualidade e a não dualidade (dvaitādvaita), o Múltiplo e o Uno, Viṣṇu ou Absoluto e os entes (jivātmans), num horizonte ontológico realista, ainda que com pesos específicos distintos. Entre essas posturas, que implicam inexoravelmente encaminhamentos de proeminência devocional (bhakti), cabe destaque a duas delas por sustentarem uma reconciliação entre a dualidade e a não dualidade em termos paritários, isto é, enquanto dois lados equivalentes de uma mesma realidade. Seus mestres fundadores, Nimbarkācārya e Caitanya Mahāprabhu, representantes, respectivamente, das escolas Svābhāvikabhedābheda ([Simultaneidade] Inata da Dualidade e da Não dualidade) e Acintyabhedābeda ([Simultaneidade] Inconcebível da Dualidade e da Não dualidade) foram responsáveis por desdobramentos muito peculiares em suas metodologias soteriológicas (sādhana): a “equalização” entre Viṣṇu, na forma personificada de Kṛṣṇa – avatāra especialíssimo ou o próprio Viṣṇu – e a/o amante-devota(o), em sua condição plena de rendição amorosa ao primeiro. Rādhā, a linda pastora que enche de amor os anos da juventude de Kṛṣṇa em Vrindavan, é o símbolo máximo da(o) amante-devota(o). Suas principais fontes literárias incluem, entre outros, o poema lírico Gītā Govinda e o Gautamīya Tantra. Neste último, Rādhā assume a condição divina de personificação da dualidade, arquétipo da energia cósmica universal (śakti), constitutiva do Múltiplo, e cujo substrato unicista, não dual, não é outro senão seu amado Kṛṣṇa. É nesse contexto metafísico que se desenvolve uma vertente devocional que tem, não em Kṛṣṇa, mas na união amorosa do casal Rādhā-Kṛṣṇa seu objeto precípuo de adoração. Com isso, a identificação paradigmática dos devotos com Rādhā é o caminho insubstituível para a união mística e o deleite amoroso em Kṛṣṇa (preman). Vivenciar o ideal Rādhā-Kṛṣṇa enquanto casamento indissolúvel e “inconcebível” entre a dualidade e a não dualidade é, finalmente, o passaporte definitivo para a elevação do devoto à condição de amante generoso e gratuito de todos os entes. É num contexto de imensurável amor e devoção a Rādhā-Kṛṣṇa que a tradição de Caitanya Mahāprabhu, mais conhecida como Vaiṣṇavismo Gaudīya, consolidou-se como vertente representativa e inovadora do Vaiṣṇavismo. Fazendo jus à pluralidade genética do Vaiṣṇavismo, o Vaiṣṇavismo Gaudīya exibe, ao longo de todo o seu percurso, uma disposição dialógica e assimiladora que tem em seus maiores teólogo-filósofos Jīva Gosvāmī e Rūpa Gosvāmī sua sistematização consciente

Religião e Espiritualidade