Outro tempo

Outro tempo W. H. Auden


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Outro tempo





A Lei, diz o jardineiro, é o Sol,
A Lei é o farol
Que guia o jardineiro
O tempo inteiro.
A Lei é a sageza de antigamente,
O ralhete estridente do avô impotente
A quem os netos deitam uma língua rude,
A Lei são os sentidos da juventude.
A Lei, diz o padre, com seu ar de vigário,
Para um povo bem pouco sacerdotal
A Lei está escrita no meu missal,
A Lei é o meu púlpito, o meu campanário.
A Lei, diz o juiz, empinando o nariz,
Num tom severo e isento,
A Lei é, como vos disse uma vez,
A Lei é, como do vosso conhecimento,
A Lei é, mas posso explicar outra vez,
A Lei é A Lei.
E todavia escrevem os doutos escrivães,
A Lei não é certa nem errada,
A Lei são apenas infracções
Punidas em certas ocasiões
A Lei é a roupa usada
Em qualquer sítio, a qualquer hora,
A Lei é Bom-dia, ou Vá-se embora.
Outros dizem, a Lei é o nosso Fado;
Outros dizem, a Lei é o nosso Estado;
Outros ainda reagem,
A Lei é nada,
A Lei partiu de viagem.
E sempre a multidão com a raiva na voz,
A multidão revoltada num escarcéu,
A Lei é Nós,
E sempre o manso idiota mansamente Eu.
Sabendo nós, amor, que não sabemos mais
Do que eles sobre a lei,
Se eu mais do que tu não sei
O que devemos ou não devemos fazer,
A não ser que é ponto assente
Feliz ou infelizmente
Que a lei é
E é só o que há a dizer,
E se parece, assim, uma absurdidade
Identificar a Lei com outra realidade,
Ao contrário de tantos outros
Não posso eu repetir
Que a Lei é,
Não podemos, mais do que eles, suprimir
A ânsia universal de pressentir
Ou de abdicar da nossa posição
Em favor de uma indiferente condição.
Embora possa pelo menos resumir
A tua e a minha vaidade
Atrevendo-me a supor
Uma ténue afinidade,
Podemos, apesar de tudo, presumir,
Por hipótese, como o amor.
Como o amor não sabemos onde nem porquê
Como o amor que não podemos coagir
Como o amor de que não podemos fugir
Como o amor que amiúde choramos
Com o amor que raro guardamos.
....
Envolto num ar complacente
Junto à fome da flor silente
À clandestina vaga da árvore,
Junto à alta febre da ave
De fome e raiva eloquente
De erecto esqueleto imponente,
Ergue-se o amante expressivo,
Ergue-se o homem deliberado.
Sob o Sol descuidado e quente,
Entre mais fortes bichos belos,
Segue caminho, arma vivente,
Com arma e lentes e bíblia,
Investigador militante,
O amigo, o audaz, o adversário,
O ensaísta, o capaz
Capaz por vezes de chorar.
A pedra sem paixões nem ódios
Cerca-o por todos os lados,
O Irmanado, o Não Só,
O integrado e o odiado,
A quem ensinaram os parentes
A enfrentar os parvos e os grandes,
Os eternos e permanentes,
Com o seu dinheiro e o seu tempo.
Porque as ténues esperanças maternas
São esposas que lhe enfadam a alma
Cedo enfadada pela moral
Da enfadonha ama, a terna
Traidora. E herda puerilmente,
Por lídimo pai enganado,
O alto torreão encantado
Que infelizmente está trancado.
E a mando de mortos ignotos,
No engodo de boas hipóteses,
Assente no banco dos loucos,
Ou o banco da decepção,
Ei-lo sanguinário e sereno
Entre encantos sedutores,
Pois grande é a sua visão
E grande é o seu amor.
Diz o escudo franco do Tempo
Que jamais cessará a constante
Contenda entre o anho e a tigreza
Por mais que ele creia, inconstante,
No seu sonho de tempos idos:
Caçador e vítima unidos,
O leão e a víbora,
A víbora e a criança.
Cada dia um novo amor
O trai. Sobre o verde horizonte
Galopa um novo desertor,
E as aves murmuram a milhas
Emboscadas e armadilhas;
Rumará a novas derrotas,
A outras dores e maiores
Até derrotar a dor.

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Carla Porto
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