Paniricocrônicas

Paniricocrônicas Caio Garrido


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Paniricocrônicas


crônicas dos sonhos em tempos de pandemia




A pandemia é um acontecimento que traz uma marca, que cinde e separa um antes e um depois, e que pode vir carregada de forças traumáticas. Neste depois da pandemia — digo depois do antes da pandemia — não depois de terminada a pandemia, porque escrevo essas letras durante o período pandêmico, em sua extremidade aterradora —, não somos mais os mesmos. Clichê repetido à exaustão, guarda sua força de realidade, ainda que possamos forçar o contrário e fingir que as coisas podem se manter dentro de uma cesta de certa normalidade. Pois mesmo que porventura vençamos a Covid, ainda assim, nós já mudamos. Muita coisa se modificou dentro da gente, e isso é para sempre.

Trata-se este de um acontecimento sem precedentes — ainda que tenham existido outras pandemias, como a de 1918, ou grandes guerras em um passado recente. Pois esta se dá em meio a uma sociedade absolutamente singular e diversa de outras de nosso passado. Para o psicanalista Tales Ab’Sáber, “a pandemia é o primeiro sintoma global da crise ambiental, que é a crise do capitalismo.”

E podemos considerá-la como um acontecimento potencialmente traumático, dada a simbiose entre pandemia e má política, já que estamos diante de um governo que não governa e pratica diariamente atos de violência e desumanização. Em sua autoridade nefasta de práticas fascistas e de destruição sem disfarces, produz o terror e a tortura de sua população, lutando abertamente contra qualquer tipo de imunização contra o vírus.

Dentro desse escopo, podemos pensar em quais afetos são mobilizados na pandemia. Há medo, porque sim, existe um objeto definido que tememos: a contaminação pelo vírus. Há angústia, porque com a pandemia vem o desconhecido em relação ao que pode acontecer — há, assim, um objeto indeterminado a temer — e muitas vezes não sabemos se estamos carregando ou não o vírus; é estar com um pé no abismo. Mas sobretudo há o sentimento de terror, que é o cair no abismo. Que é a sensação que nos vem quando há essa aglutinação de pandemia & governo autoritário de extrema direita. Pois o afeto do trauma é o terror, não o medo.




Sonhar para despertar

Em meio à peste, entre terrores e traumas, a vida continua pulsando, assim como foi desde a primeira espécie nascida. O sonhar é um desses elementares fundamentos da vida. E dentro desse fenômeno (em que também se encontra a nossa mente), que embora pareça ser uma unidade, que tenhamos uma mente individual, mais do que atravessados pelo outro, somos formados instante a instante por um caleidoscópio de forças, imagens, histórias e representações que vêm realmente de outros. Tais forças mobilizam o sonhar de uma forma que ainda não compreendemos o suficiente — talvez estejamos longe de compreender.

O principal expoente dos estudos dos sonhos nos confirma essa primeira acepção; Freud dizia que a psicologia do indivíduo não pode desvencilhar-se da do grupo. Segundo ele, “o que separamos como psicologia individual humana, desconsiderando todos os traços do grupo, só veio a ter proeminência a partir da antiga psicologia de grupo, por um processo que talvez ainda possa ser descrito como incompleto”. Assim como René Käes, que nos fala da matéria interpsíquica como formadora e nutridora dos sonhos, e que: “não sabemos onde se encontra a fábrica do sonho e quem é o verdadeiro sonhador do sonho".



O fenômeno onírico é muito mais do que uma extravagância de nossa mente. Trata-se de uma manifestação contínua de articulações psíquicas que ampliam a possibilidade de enxergarmos a realidade. O sonho não existe para bagunçar, para confundir. Não é uma mistura insensata de imagens e histórias num liquidificador, que gera narrativas fragmentadas ou de aparente sem-sentido. O sonho é uma captação permanente de sentidos da realidade.

E pela ambiguidade muitas vezes sentida, o sonho é um paradoxo: nada perscruta, investiga e contempla com tanta obstinação e tenacidade o nosso passado quanto os nossos sonhos.




Editar o futuro

O passado cresce a cada dia que vivemos, e nesse sentido pode ir se tornando um “monstro”. Um monstrengo ressentido, boquiaberto e estupefato diante da vida, que se apresenta em certas visões oníricas. Desse modo, é preciso tratar o passado com ternura e atenção, mesmo quando ele nos cobra e fere, o que acontece até quando estamos no caminho das calorosas e boas lembranças.

Educar o passado para projetar (sonhar) futuros possíveis. O que me lembra alguns versos de Antonio Machado, poeta espanhol em “Cantares”:

“Caminante, no hay camino,

se hace camino al andar.”




A esses versos de Machado, somo os de Cora Coralina, pra irmos cantando até o final:

“Caminhando e cantando com as mãos cheias de sementes”.




Acordar para o pesadelo

Acordar pela manhã vendo o absurdo que se tornou a realidade é como acordar para um pesadelo. O que muitas vezes lembra o despertar de Gregor Samsa, impressionante personagem de Franz Kafka. Na primeira vez que ouvi falar sobre “A Metamorfose”, quis a todo custo esquecer aquela ideia que parecia que ia me contaminar como um vírus, fazendo-me temer experimentar e entrar em contato com minha estranheza humana.

Este livro de Kafka, tão poderoso e marcante, ganha significados e interpretações a cada dia. Na pandemia, isso não é diferente. A cada dia que levantamos de nossas camas, encarnamos insetos, anfíbios, objetos não identificados de nós mesmos. Um bicho que toma conta, um aperto no peito, uma sensação crônica de fadiga. Pânico. Paniricocrônicas.




As crônicas da peste

Os sonhos presentes neste livro são os objetos de inspiração para as crônicas. São sonhos que tive no período de cerca de um ano de pandemia, e desde então foram objeto de meu escrutínio, análise e reflexão. Os sonhos selecionados têm a característica de pautarem esse acontecimento traumático, refletindo temáticas atuais, como a questão de classes, de identidade, racismo, questões de gênero e vulnerabilidade, entre outras.

O mestrado que por ora faço, que passa pela temática dos sonhos, certamente me ajudou na execução do projeto. Neste livro, dei preferência aos sonhos de tipo elaborativo1, ou os chamados curativos2 (os sonhos que adoecem podem ser os mesmos que “curam”3).

Importante dizer que o objetivo aqui não é o de demonstrar a teoria dos sonhos da Psicanálise e sua aplicabilidade. Isso levaria a outros caminhos que não os propostos. Para auxiliar no entendimento, um relato de sonho é composto pela narrativa daquilo que dele lembramos — considerada como conteúdo manifesto do sonho — e que raramente mostra claramente seus sentidos. Para chegar a hipóteses interpretativas, é necessário ir em busca do conteúdo latente do sonho — a essência do sonho.

Para tanto, é necessário entender como o trabalho do sonho opera: transformação no seu contrário (afetos, situações, etc.), condensações, conversão de pensamentos e palavras ouvidas em imagens, censura contra impulsos considerados indesejáveis, entre outros.



Penso que tentar transformar o sonho lembrado em crônica literária, diante das especificidades do tempo em que vivemos, possa ser uma forma de sonhar um novo sonho, a partir dele.

Importante salientar também que, muitas vezes, mais significativo que o sonho propriamente dito e seu relato, são as associações do sonhante.

Muitas das análises e comentários aqui apresentados, assim como as crônicas, buscam integrar a experiência individual com as possíveis significações e sentidos para o coletivo. Esse talvez seja o maior objetivo que tenho com este livro.




As crônicas aqui dispostas podem ser lidas per si ou associadas à leitura dos sonhos e comentários que as acompanham. E a lógica de leitura pode ser diversa: tal como os sonhos, não é necessária a ordenação de começo, meio e fim.

Cabe destacar que estas crônicas são também uma grande homenagem a alguns dos grandes escritores e pensadores que habitaram meu pensamento e imaginário nesses últimos anos. Ajudam-me a viver e a pensar.

A ideia geral é que o livro possa ser de alguma forma um dos tantos testemunhos do tempo que vivemos e suas particularidades.




Apresentando a Peste

A Peste que evoco aqui nesta apresentação é bem conhecida em várias obras de porte da Literatura universal, vide Camus e Sófocles. Na obra prima de Sófocles, Édipo Rei — ou Édipo Tirano —, a peste representa a violência que se desregrou naquela sociedade. Tebas, ali na tragédia, é a cidade onde tudo acontece. Tomada por doenças, crimes e a tão conhecida luta humana por conhecimento e poder.

Nossa Tebas, e a peste que pode ser caracterizada pela pandemia que atravessamos, é representante desta violência. A pandemia do coronavírus só acontece porque algumas pessoas, grupos, instituições e governos se beneficiam com o descaso frente à natureza e os homens. A peste traz enigmas que, se não desvendados, levam a comunidade humana para o terror e para o abismo — a violência de todos contra todos.

Os sonhos nos permitem representar bem o nosso modelo de vida em transe e em crise, com a respectiva derrocada das cidades e do capitalismo. Esta obra pretende ser uma reflexão prolongada e uma investigação poética dos sonhos, e da guerra que nos pregam e jogam. E também uma reflexão sobre a cidade, sobre o que acontece em nosso ambiente urbano e sociocultural. Oniricidade.

“Ser ou não ser?”

“Existirmos: A que será que se destina?”

“Penso, logo existo”

“Sinto, logo penso, logo existo”.

Sonho, logo existo.

Sinto, logo sonho, logo penso, logo existo.

Sonhar-se.

O sonhar e o pensar absolutamente conectados.

Penso que o sonho é um filme de baixo custo — mas não de baixo custo emocional — sobre nossas memórias de guerra. Uma guerra sem nome, que acontece à nossa revelia, em nome de alguma coisa maior que nunca ninguém sabe exatamente o que (ainda que saibamos: o capital, o dinheiro). Ainda assim, sentimos saudades de algum não-sei-nome. Sonhamos para descobrir. Uma poética política. Ou melhor, a política da poética. Um clarão momentâneo acerca do mal-estar da civilização, com a parte que nos cabe desse mal-estar. E vivenciamos esse mal-estar, em sua forma individual, espelhando uma experiência de mal-estar que é absolutamente coletiva, definitivamente social. De que forma singularizamos esse mal-estar?

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