Psicologia Pós-Junguiana e debates contemporâneos de gênero e sexualidade

Psicologia Pós-Junguiana e debates contemporâneos de gênero e sexualidade BÁRBARA TANCETTI...


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Psicologia Pós-Junguiana e debates contemporâneos de gênero e sexualidade (01 #01)





É com imensa alegria que realizo a apresentação desta obra. Logo de partida, agradeço pelas parcerias e contribuições que aqui se estabeleceram, em torno de uma temática tão central nos debates contemporâneos: as revisões e desconstruções dos conceitos de gênero e sexualidade e como tais revisões têm impactado o campo de estudos da Psicologia Analítica ou Junguiana. Agradeço nominalmente às autoras Bárbara Tancetti, Luna Pereira Gimenez, Jessiane Kelly Nascimento de Brito, Stella da Silva Carvalho Nunes da Rosa, e aos autores Carlos Augusto Serbena, Durval Luiz de Faria, Gustavo Pontelo Santos, Raul Alves Barreto Lima e Vicente Baron Mussi, ao lado de quem tive a honra de construir este livro, além da autora Luciana Martins Dias e Silva, que gentilmente nos concedeu seu olhar no prólogo da obra.

As teorias junguianas, diante do debate social e político, são constantemente acusadas de pouco envolvimento. Embora tal cenário esteja se modificando, é importante considerar que o engajamento da área com as temáticas públicas esteve desde Jung envolta em névoas de desconfianças, em função do possível apoio de Jung ao nazismo em um determinado momento da história. Não é nossa tarefa adentrar este debate, tampouco tenho alguma preocupação em defender ou acusar o ser humano Jung. Sua obra fala por si e claramente ela demonstra preocupações coletivas, uma vez que ao postular o inconsciente coletivo, Jung vasculhou e reconheceu a diversidade cultural presente no mundo. Mas ele, como muitos e muitas de seu tempo, padeceu das problemáticas de sua época. Esperamos que ele tenha integrado suas sombras a tempo de contemplar seus erros e reorientar sua consciência.

Junta-se a isso a crítica – que merece nossa atenção – de que a visão clássica de Jung sobre animus e anima teria fornecido subsídios para um reforço aos binarismos de gênero. E provavelmente forneceu. Ressaltamos quanto a isso, dois pontos. O primeiro é que qualquer autor, autora ou autore que tenha vivido e morrido antes da segunda onda feminista ou bem no início dela – como é caso de Jung, que faleceu 1961 – perdeu os debates que trouxeram a concepção de gênero como construção social e de gênero, sexo e sexualidade como conceitos distintos. A noção de orientação sexual e identidade de gênero se popularizou na década de 1990, já na terceira onda dos movimentos feministas. O que quer dizer que a falta de repertório nesse debate é uma questão temporal e não de posicionamento político.

O segundo ponto que quero destacar quanto a isso é que as boas teorias são vivas, permitem ampliações, recriações, reformulações, fornecendo pontos de partida e não de chegada e são possíveis de serem adaptadas às transformações sociais. Para tal tarefa, estão em processo os trabalhos de pós-junguianas/os/es. Eis a nossa proposta nesse livro: revisar criticamente as teorias junguianas, trazendo novos olhares, sínteses e contribuições, diante do que é possível nossa consciência integrar a partir dos aprendizados culturais contemporâneos. A única vantagem que temos em relação aos nossos e às nossas ancestrais é ter a possibilidade de intervir no debate atual enquanto ele ocorre. Assim, quando as próximas gerações mirarem nosso esforço hercúleo em sair dos binarismos de gênero, creio que pareceremos para elas talvez primárias/os, neandertais do debate. Mas teremos feito um pedacinho da história.

Para compor tal retalho da história, contamos nesse livro com algumas pesquisas, entre elas, a das psicólogas e mestras Bárbara Tancetti e Luna Pereira Gimenez: Feminismos pós-junguianos: revisões das teorias clássicas e novos despontes, que abre o livro com um panorama histórico dos feminismos, incluindo suas subdivisões contemporâneas e os principais debates acerca dos essencialismos de gênero e de como a visão patriarcal incidiu sobre a pressupostos junguianos. Revisando a teoria junguiana da contrassexualidade e os conceitos clássicos sobre feminino e masculino, anima e animus, Bárbara e Luna aportam diálogos fundamentais com autoras/es como Susan Rowland, David Stacey, Ricki Stefanie Tannen, Qualls-Cobert, Andrew Samuels, James Hillman, entre outras/os/es, de forma a reorientar o olhar analítico para uma compreensão não naturalizada, não essencialista de gênero, que reconheça as diferenças e recomponha o campo imaginal sobre a feminilidade e as mulheres.

O trabalho do psicólogo e doutorando Raul Alves Barreto Lima e do psicólogo e professor doutor do Núcleo de Estudos Junguianos da PUC/SP Durval Luiz Faria de Souza, Psicologia Analítica, gênero e feminismo: o sexismo como complexo cultural, também visita a psicologia das mulheres, indicando os preconceitos e confusões conceituais ocorridos no imaginário social e nas teorias junguianas quando se atribui às mulheres uma ausência de objetividade, por conta da não identificação com o masculino arquetípico ligado ao Logos, tratado como um aspecto inconsciente e não trabalhado psicologicamente nas mulheres. Raul e Durval evocam o complexo cultural para abordar os problemas sociais e psicológicos envolvidos na visão patriarcal e sexista que atribui às mulheres a noção de “emocionais”. Os autores apontam a interdependência do psicológico e do político, a partir das considerações de Andrew Samuels, de forma a considerar uma revisão ao caráter de literalidade atribuído aos mitos das deusas e, portanto, à psicologia das mulheres. Assim, os essencialismos podem ser substituídos pela compreensão psicopolítica de gênero.

No texto: Autoconhecimento e feminismo: uma perspectiva junguiana sobre O feminismo é para todos, de bell hooks, a psicóloga Jessiane Kelly Nascimento de Brito discute alguns aspectos do feminismo que desembocam em atitudes “anti-homem”, e acabam por manifestar tendências de movimentos de massa que não integram a sombra coletiva à psique individual. Nesse sentido, a partir do entrelaçamento com apontamentos de bell hocks e de Marie Louise von Franz e Jung, Jessiane indica a importante e necessária tarefa das mulheres confrontarem seu próprio sexismo e patriarcalismo introjetados em suas psiques.

Já o quarto artigo: O medo do feminino na homofobia: Uma investigação sobre o discurso homofóbico e sua relação com a visão de gênero dentro da sociedade patriarcal, da psicóloga Stella da Silva Carvalho Nunes da Rosa, do psicólogo e professor doutor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná Carlos Augusto Serbena e do psicólogo e mestre Vicente Baron Mussi abre caminhos para pensarmos na questão da homofobia. O texto apresenta análises de pesquisa realizada com homens, apontando que quase a metade do grupo investigado apresentou posturas classificadas como “intolerantes” em relação a questões de gênero. As análises indicam a reprodução de estereótipos, o que se relaciona com a projeção de aspectos não reconhecidos e não integrados da sombra, além de apontar que grupos que pregam a separação entre gêneros possuem uma grande rigidez psíquica e são tomados pela falta de racionalidade, devido à ausência do Pai arquetípico, mas ainda o evocam para tentar justificar seus posicionamentos, atuando por vezes de forma ambígua com atitudes reativas e emocionais, de forma que o feminino negativo é negado e relegado ao inconsciente. Segundo a autora e os autores, o medo do feminino e a homofobia surgem, portanto, como um sintoma da angústia diante de uma masculinidade provocada a ser reconstruída.

O texto: Inspirações das “mulheres de Lesbos”: a imaginação encarnada na defesa de direitos humanos de mulheres lésbicas nos círculos sagrados, da psicóloga e professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de Clarissa De Franco (eu, mesma!), compõe o quinto artigo desta obra e aborda algumas iniciativas de defesa do direito à vivência do amor homoafetivo de mulheres lésbicas e direito à sua pertença em grupos ligados aos Círculos Sagrados de Mulheres e também coletivos que associam autoconhecimento e espiritualidade. O trabalho foi conduzido tendo como base a metodologia junguiana, que trabalha com a compreensão dos fenômenos por meio dos símbolos que emergem e também da imaginação encarnada, que, em português, costuma ser chamada de imaginação ativa, mas por opção política, o termo do espanhol "imaginación encarnada" foi escolhido. O artigo traz como inspiração as “mulheres de Lesbos” e a poesia de Safo para amarrar tais iniciativas, a despeito de também reconhecer os estigmas e preconceitos que ainda são produzidos e mantidos em alguns destes espaços.

O psicólogo e mestre Gustavo Pontelo Santos nos brinda com o poético e corajoso texto: Eros no armário: notas analíticas sobre a experiência gay, que lança os inquietantes questionamentos – em primeira pessoa – sobre de que maneira os sujeitos LGBTQIA+, fantasiam e são fantasiados e de que maneira o mundo interior poderia estar vinculado a um mundo exterior que o nega. Tais questionamentos escancaram o quanto a cisheteronorma está calcada na experiência e no modelo patriarcal. Utilizando a metáfora do armário, Gustavo indica que o armário seria uma metáfora para as tensões da ocultação/revelação da experiência gay, à qual está ligado, no entanto, em função da repressão moral e social. O mito de Eros e Psiquê é trazido como exemplo para identificar o momento em que o “Amor é revelado para a Alma que o julga monstruoso, é ferido por ela, ira-se e precisa de tempo para se curar. Eros se vê fora de seu armário, revelado pelo desenrolar das fantasias sobre sua identidade.” Gustavo conclui, indicando que “é preciso que Eros circule no mundo, fora dos armários e que, portanto, nós os derrubemos. Não se trata aqui apenas do direito ao amor, mas antes do direito de existir”.

Novamente o professor doutor Carlos Augusto Serbena e o psicólogo e mestre Vicente Baron Mussi, nos oferecem seu olhar em: Homofobia e repressão do feminino: algumas contribuições da Psicologia Analítica. O texto aponta que a cura da sombra ligada à homofobia passa, para além do reconhecimento daquilo a que se reprimiu, também pelo Eros, ou seja, pelo estabelecimento de vínculos. Estabelecendo diálogo com James Hillman, os autores indicam é preciso descobrir a capacidade de amar personagens desagradáveis em si mesmo a partir de uma postura que se esvazia da pretensão de virtude diante de atitudes homofóbicas de outras pessoas e responsabiliza-se pela inclusão destas pessoas, admitindo que a sombra da homofobia acompanha outras sombras como a da exclusão e solidão.

Fechando a obra, a psicóloga e professora doutora do Programa de Ciências da Religião da UMESP Clarissa De Franco (esta mesma que vos escreve), no texto: Decolonialidade do saber nas teorias junguianas para o debate de gênero: imagens arquetípicas de um sagrado não-binário como caminho de elaboração do complexo cultural da LGBTfobia, realiza uma interlocução entre as teorias pós-junguianas, os estudos de gênero e as teorias decoloniais. A proposta do texto parte da perspectiva de decolonizar a área, construindo novas narrativas para o debate de gênero no contexto das análises junguianas. Clarissa passa por revisões dos conceitos de animus e anima e breve análise do papel da persona diante das construções identitárias LGBTQIA+, discussão da LGBTfobia nos círculos sagrados de homens e mulheres e apresentação do conceito de sagrado não binário, articulando tal conceito com a ideia de psique andrógina e finaliza o texto com imagens não binárias, intersexo, e não tradicionais de gênero e sexualidade, que podem auxiliar na construção de repertórios simbólicos para imagens arquetípicas da não binaridade.

Esperamos, com a proposta desta obra, ampliar os caminhos de debate para o campo das teorias junguianas e seu aspecto de análises sociopolíticas, em especial no que tange à temática de gênero, sexualidade e afetividade. Nosso desejo é que Eros possa desvelar-se nu e que encontre acolhida nesse reconhecer a si e ao(à) outro(a).

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