Pulei sete ondas e não funcionou, então pulei o mar todo

Pulei sete ondas e não funcionou, então pulei o mar todo Carla Mühlhaus


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Pulei sete ondas e não funcionou, então pulei o mar todo





Escrever é uma viagem pelos dias acima. Quem escreve tem um mapa a desenhar-se na cabeça, uma bússola no coração, uma placa de titânio e sete parafusos a segurar as dores da inquietação. Para viajarmos temos que estar bem vivos. Respirar, querer ir aonde nunca fomos, respirar de novo. Sentir. Entender. Sofrer. E, se não existir um entendimento imediato, continuar a viagem dará, porventura, respostas íntimas, pessoais e, coisa estranha, também universais. As viagens têm cores, cheiros de outras vidas, de outras pátrias acostumadas aos viajantes. São feitas de um tempo fresco, tal como as pequenas fontes de movimentação circular e contínua que nunca secam nem mudam de lugar. E, todavia, o viajante é o próprio caminho mapeado pela esperança de uma vida melhor. Sete ondas ou um oceano inteiro separam as duas pátrias que Carla Mühlhaus tão bem conhece e descreve. Que tanto quer amar. Mas não há carruagens douradas para percorrer caminhos doces e idílicos. Ali, mais à frente, as palavras constroem uma ponte de especiarias sentimentais. Imbiriba e puxuri. Louro e canela. Passo a passo, sílaba a sílaba, tudo vai fazendo sentido: em frente! O mapa está feito na cabeça. A bússola aponta para fora do coração. E os pontos de exclamação são como setas em direcção à emoção extrema das pequenas ondas de intenções que se transformam em oceanos de linguagem.
Que fazer com a realidade onde todas as coisas dialogam? A escuta é, também, um caminho a percorrer, sabendo que “a verdade está na percepção”. Uma borboleta, duas lembranças, três abraços. Uma mãe, ama-se para sempre. Carla Mühlhaus fala-nos de redemoinhos de afeto e memória, enquanto o tempo palpável organiza a sua viagem. Há um universo feminino tão palpável e corajoso como o tempo, mesmo que os seus pés sejam pequenos para as despedidas. Um abismo, duas mortes, três angústias. Há cicatrizes que só farão sentido se forem lidas depois de as escrevermos. Não devemos jogar fora uma cicatriz bem desenhada. Poderá fazer-nos falta, essa pele onde costuramos saudades, vírus e outras serventias. A pandemia, de tantas cicatrizes que deixou, é quase bela.
Entre 2018 e 2022, o mundo de Carla Mühlhaus mudou. As bonecas da filha Alice também, agora todas de cabelo cortado. Textos que são flechas em cheio no alvo do que ainda é humano dão-nos esses testemunhos. E, se podemos guardar os espinhos bem secos no bolso, e usá-los quando a dor é mais densa do que uma gota de sangue, para que queremos um buquê de rosas enjoativas numa jarra? Alice cresce dois centímetros em cada noite e nós brincamos de viver, uma e outra vez, pois, enquanto as memórias são retocadas para não se esmaiarem como os pratos de porcelana: “a vida e a literatura, duas faces da mesma moeda”.
Nas suas viagens, Carla Mühlhaus carregou, corajosamente, uma bagagem filosófica de grande peso: aranhas, vasos de flores, constrangimentos, saquinhos de amargura de conversetas, e ainda uma voz de volta. Nas suas crónicas, não ficou esquecido o grande conjunto de eufemismos que é a civilização. E ainda que não saibamos a saída do labirinto, pôs os pontos nos is: é preciso deixar o amor vencer. “Espantem-se.”

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