Alberto 01/02/2022Literatura, poesia, filosofia, em três quadros por vez, numa obra colossal que casa com o espírito do seu tempo.Laerte Coutinho é uma das melhores cabeças no Brasil de hoje. Faz anos sua obra deixou de ser cômica para se tornar filosófica, poética, quase mística. Esse "Manual" contém centenas de tiras geralmente não interligadas umas às outras, a não ser pela proposta de uma exposição do absurdo da vida, especialmente da vida urbana na sociedade capitalista. As tiras envolvem o nonsense, o humor negro que causa reflexão e melancolia em vez de riso, a introdução dos personagens em cenários e eventos onírico-delirantes, para encaminhar um subtexto filosófico profundo e nunca explicitado. Mas o conjunto das tiras denuncia uma preocupação metafísica, gnosiológica, ontológica, política, ética. É poesia em quadrinhos, mas quase nunca poesia leve ou otimista.
A tira que serve de epígrafe do livro, espantosa, resume tudo: não é obra para se ler tentando entender com a razão, porque trata de temas que a razão não alcança. Não é para tentar decifrar o trabalho de Laerte, é para comungar com ela de uma certa perplexidade, do puro espanto de onde pode vir um vislumbre, uma compreensão meio indizível.
Essas tiras funcionam muito bem como compilação, que permite entrever a recorrência de certos personagens e situações, e tornam mais forte o resultado final de algumas poucas sequências que "contam uma história", em geral patafísica. Mas quem as leu primeiro no jornal, onde originalmente foram publicadas, talvez tenha aproveitado mais. No meio das notícias do dia a dia, da crônica da política brasileira, por exemplo, o nonsense e o absurdo de Laerte ficava, por assim dizer, em casa, no seu habitat natural. Por comparação com as notícias das páginas vizinhas, o Minotauro e os delírios iconoclastas de Laerte apareciam como uma decorrência quase lógica, como mais uma cena habitual no enredo do teatro do absurdo em que vivemos.
Recomendo a leitura para quem é fã, para quem curte poesia e filosofia, para quem entende o humor negro e absurdo, mas recomendo mais ainda para quem não conhece nada disso, nunca leu tiras ou quadrinhos, e quer "começar por cima", com uma obra que é indiscutivelmente literária, e cumpre as funções da alta literatura ademais: revela o espírito de um tempo, ilumina o vazio da existência, pergunta com uma voz autoral inconfundível as mesmas eternas questões humanas.