Marc 29/10/2023
Um livro que gera incontáveis interpretações e que segue sendo um tipo de mistério (muito, a meu ver, porque não se quer olhar o aspecto religioso óbvio), curiosamente é muito adaptado para os quadrinhos. Seria de se imaginar que por não haver acordo sobre as interpretações a respeito do livro, poucos se arriscariam a adaptar para hqs; mas é o contrário. E eu gostei bastante dessa adaptação. Passei vários dias lembrando da história depois que li, porque a referência visual que Chabouté oferece ajuda muito a entender certos pontos da história.
Evidentemente, aqui temos mais uma interpretação sobre o livro, uma aposta de que se trata de descrever a obsessão e loucura que um líder pode sofrer e conduzir até à tragédia. Ahab ignora avisos, pedidos desesperados da tripulação, ignora até mesmo o pedido de um pai agoniado com a perda do filho. Ele enxerga apenas sua missão, a vingança contra a baleia.
Essa é uma visão muito válida sobre o livro. É bastante útil, também, porque nos ajuda a pensar como líderes, estejam onde estiverem, podem conduzir a tudo e todos para o fim óbvio, basta que se sintam desafiados ou nutram algum tipo de mágoa com o passado e queiram provar ser capazes de derrotar o inimigo — ou se vingar. Quanto mais apresenta um aspecto frágil, mais Ahab completa sua figura com uma espécie de aura que faz com que seus comandados o sigam cegamente. Trata-se do carisma, que não é apenas a capacidade de “ser legal”, como está popularmente associado ao termo. Um líder carismático pode ser amedrontador, aterrorizante, até — mas consegue direcionar seus comandados exatamente para onde quer, sem ter que usar a força, eles o obedecem sem saber muito bem os motivos. Saíram livros sobre Hitler que apelavam para esse tipo de explicação para justificar as razões que faziam militares capacitados não questionarem suas ordens absurdas. Até me lembro que durante o governo de certo presidente, era comum jornalistas usarem o mesmo tipo de explicação, mas dessa vez com o significado deturpado — esse que mencionei acima — para justificar sua tremenda popularidade. E, ironia das ironias, essa figura também foi mutilada e apresenta um aspecto frágil, que supostamente compensa com o tal carisma...
O que importa é que Melville enxergou, ainda em meados do século XIX, fenômenos que só ocorreriam cerca de um século depois, como o domínio de líderes totalitários baseados em um tipo de autoridade que não existia até então (o carisma) e conduziriam seus países à tragédia. Personalidades que tomam para si a idéia de poder absoluto, de uma força tão grande e misteriosa que seria capaz de modificar todo o planeta. Sonhos de grandeza, de tamanho poder que chegam a dizer que não morrerão ou que só morrerão com uma certa idade (como, sei lá, chegar ao ponto de dizer que só vai morrer aos 120 anos...), enfim, sujeitos que se vêem como forças sobrenaturais de tanto poder que desejam e conseguem acumular. Não são poucas as vezes que Ahab demonstra se ver dessa maneira. Mas é a partir desse ponto que eu vejo que a interpretação de Chabouté sobre o livro fica incompleta. Falta a compreensão daquilo que Dostoievski analisou a vida toda, que era a modificação da sociedade a ponto de deixar a explicação religiosa de lado e se tornar exclusivamente materialista. Penso que Melville antecipou em alguns anos esse entendimento que caracteriza nossa modernidade, ou seja, da exclusão de Deus do mundo (em termos filosóficos, a morte de Deus) para que tudo seja reduzido a um tipo de explicação materialista, que não suporta outra dimensão da realidade. Apenas assim homens se tornam capazes de sonhar com tanto poder que nada no mundo seja capaz de detê-los, nem mesmo as forças mais poderosas criadas pela natureza — nem mesmo as forças da história, para falar em termos que boa parte desses tiranos conhecem bem.
Esse ponto, que arremata as causas da psicologia de Ahab, não está presente nessa hq. Ele reconhece muito bem que se trata de um tirano, de um líder que domina não pela força, mas pelo carisma, e que esse líder tem um desejo de grandeza tão absurdo que sonha em dominar o mundo, absolutamente tudo que seus olhos sejam capazes de alcançar. É o homem buscando sentar no trono de Deus, substituí-lo. Mas esse aspecto, que seria fundamental para compreender Ahab, não aparece quase nunca nas interpretações sobre o livro.
Me parece que sem essa dimensão a história fica incompreendida. Há muitos acertos, mas eles são fáceis, porque Ahab aparece pintado em cores muito fortes no livro de Melville. Ele quase é caricaturado em alguns momentos, exatamente como os tiranos reais costumam ser: ridículos e orgulhosos. No mais, senti falta da descrição do cotidiano do navio, que é propositalmente monótona, com a intenção de mostrar o mais exatamente possível a vida do marinheiro daquele tempo. E, como não poderia deixar de ser, apontar o desprezo de Ahab pela atividade, pois só lhe interessava matar Moby Dick.