Douglas MCT 16/02/2020
Fofo e encantado, só que não.
O roteirista Fabien Vehlmann (que também já escreveu o divertido Spirou) foi bastante inventivo ao fazer uso de temas universais intrínsecos aos seres humanos, ao encaixá-las em um contexto completamente absurdo: um grupo de pequenos seres é obrigado a sair do lugar aconchegante onde mora e iniciar uma luta pela sobrevivência em um mundo terrível. A casa deles era o cadáver de uma garotinha estirado no meio da floresta. As ilustrações de Kerascoët (maneira como assina o casal Marie Pommepuy e Sébastien Cosset) são de traços limpos, fofos e delicados, com cores suaves, dando o tom certo de conto de fadas que esse quadrinho evoca.
Para um leitor desavisado, Aurora nas Sombras pode sim a princípio passar por um livro lindo repleto de encantos, até mesmo porque a edição caprichada da Darkside remete imediatamente a isso, do material gráfico a diagramação, em mais um ponto certeiro da publicação, que atinge em cheio quem realmente aprecia narrativas fabulescas, que em sua essência e origem, não tinham nada de belas (para os leigos, basta buscarem a verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho ou Rapunzel, só para começar). A leitura é rápida, vai numa sentada em menos de uma hora, já que a narrativa é fragmentada entre a busca por sobrevivência na natureza selvagem e entre as próprias criaturinhas e curtas tiras jogadas no meio do enredo, revelando pequenos momentos perversos de corrupção social.
Afinal, esse quadrinho salta de Alice no País das Maravilhas para O Senhor das Moscas num único pulo, pois ao colocar seus personagens em situações extremas que despertam sentimentos como inveja, egoísmo, rancor e ganância, Vehlmann e Kerascoët entregam uma narrativa mórbida e sádica ao mesmo tempo, a medida que nos encanta mesmo em meio a tanta maldade, pois o cinismo e o humor negro também permeiam a obra, fornecendo momentos divertidos (como a menina gordinha devorando outra menor, enquanto a amiga assiste a tudo e depois muda de assunto), num ambiente onde as figuras são tomadas por apatia ou desinteresse, já que só o próprio umbigo importa, mudando de lado conforme lhe for conveniente. E o leitor mais sagaz vai perceber que a dupla artista não está falando de criaturas fantásticas, mas de nós mesmos.
Aurora nas Sombras é uma fábula sim, crua e cruel, enganadoramente fofa, mas evidentemente sincera no reflexo que dá aos seus leitores.