Soares.Julio 30/07/2019
Fecham-se as cortinas de Senhor Milagre, mas o show continua.
Senhor Milagre vol. 2. Editora Panini; 152 páginas; capa cartonada; publicação em dois volumes; preço de capa: R$24,90. Escrito por Tom King e ilustrado por Mitch Gerads.
Esse é o segundo e ultimo encadernado da fase do Senhor Milagre escrita por Tom King e ilustrada por Mitch Gerads em comemoração ao centenário de Jack Kirby. Recém vencedora do premio Eisner Awards 2019 nas categorias Melhor Minissérie, Melhor Roteirista (Tom King) e Melhor Arte-Finalista (Mitch Gerads). Com seis capítulos assim como seu predecessor, é o fechamento do arco apresentado no primeiro volume.
O segundo volume retoma os noves quadros por paginas já estabelecidos no encadernado anterior, mantendo o ritmo agradável e sem atropelos, assim como a repetição de imagens em alguns quadros trespassa com êxito o ritmo próprio da historia que está sendo contada. Outro ponto marcante nessa estrutura aqui inserida é a união da mesma cena em três quadros da pagina, que ao inserir a estrutura divisória, deixa uma cadencia própria a historia, além da metáfora de grades que os prendem. O próprio uso dessa estrutura de nove quadros por paginas tão conhecido por Watchmen é usada magistralmente por King/Gerads que em geral cria mini narrativas próprias em cada pagina, onde o primeiro quadro é o inicio do conflito e no ultimo é a resolução. Além de que cada capítulo tem seu conflito e resolução, ao menos até o fim da primeira metade desse encadernado.
A primeira pagina do volume anterior foi bastante impactante, com Scott Free caído com os pulsos cortados, e aqui, ela ganha uma rima temática. Se no inicio do primeiro volume vemos o renascimento de Scott Free com o apoio de sua esposa, a Grande Barda, aqui no segundo presenciamos um nascimento e é Scott desta vez o apoio de Barda.
Senhor Milagre é um trabalho bem autoral de King, então é presumível que muito de sua experiência com o nascimento dos filhos, principalmente o primeiro, seja base para a construção da obra. O nascimento do bebê Free permeia a história, elevando os aspectos vistos na primeira parte. E é como dizem, “onde há nascimento, há morte”, e há uma guerra sendo travada entre Nova Gênese e Apokolips. Após a morte de Órion, Scott foi designado como novo Pai Celestial, um deus de Nova Gênese, e isso lhe dá uma grande responsabilidade de carregar a vida e morte de seu exercito e povo em uma guerra sem sentido em suas costas. O que sugere que consiga lidar com isso, tendo muito mais em suas mãos? Scott Free, o maior escapista da Terra mais conhecido como Senhor Milagre, do quê ele irá escapar? Ou ele ficará e enfrentará? De inicio, só temos uma certeza: Grande Barda estará ao seu lado.
Tom King já havia nos revelado que a relação de Scott e Barda era o ponto motriz de sua história, e nesse segundo encadernado, ganha ainda mais força com a chegada do pequeno Jacó (ou Jacob). O relacionamento deles é posto a prova e analise em diversos pontos. Aqui Tom King nos revela os medos, as fraquezas, os pontos de ruptura e o companheirismo desta relação. Creio que essa HQ irá ser bastante celebrada no que propõe abordar o relacionamento entre duas pessoas, amparada pela ótima narrativa e pelo texto da obra. A sensibilidade de Tom King torna tudo grandioso aqui, expondo os lados e gerindo confrontos essencialmente humanos, como havia feito em seu trabalho anterior no Visão. Há uma excelente cena de confronto verbal entre Barda e Scott que considero tão forte e memorável quanto seria um confronto físico entre Batman e Bane. “Éramos prisioneiros. A Vovó nos torturou. Não fomos felizes”, a frase dita por Barda que nos leva a esse momento retumbante na história, que desde o principio está sendo apresentada com melancolia e dor, que coloca em xeque questões que o próprio Tom King deve ter tido em seus períodos mais graves de depressão. Scott e Barda são filhos da guerra, frutos dessa estrutura e mesmo que ambos tenham sobrevivido a isso, não quer dizer que estejam essencialmente bem. Scott acha que fugiu disso, mas Barda lhe mostra as correntes presas que ele não queria enxergar, como uma assistente de palco que se preocupa com seu ilusionista que está confuso.
Outro tema que retorna é a guerra. Agora como Pai Celestial, Scott amplia seu papel, tomando a frente nos conselhos de guerra, gerindo seu lado; e Tom King nos faz questão de movimentar essa amplitude belicista entrecruzando com outros pontos da trama e inserindo diálogos ou monólogos deslocados sobre suas vidas na Terra, que nessa altura, tornou-se claro a intenção de obscurecer as motivações ou até mesmo a necessidade da guerra e nos questionar o real significado da mesma. Tom King atuou na chama Guerra ao Terror, então nada mais justo que expressar seus sentimentos sobre o tema aqui, levantando questões instigadas lá. King retorna ao tema, mas não repete o subtexto. Questionar a guerra foi algo implantado desde o primeiro encadernado, aqui, há outro ponto, a separação de Scott com seu filho e esposa. A todo o momento vemos Scott receber chamadas de sua esposa acerca dela e de seu filho durante intervalos das batalhas, como soldados que recebiam cartas e recebem videoconferência. A vida está acontecendo e Scott está preso. “Não há escapatória” é dito por Scott enquanto lidera suas tropas. Não importa mais o sentido da guerra, o maior escapista da Terra está preso a ela. E como um soldado longe da civilização, os traumas espreitam.
Desde o primeiro volume dessa obra, já sabíamos o teor dessa HQ. Não é por menos, logo no inicio presenciamos a tentativa de suicídio de Scott Free, algo que devemos logo nos atentar para o conteúdo da obra. Em diversos momentos temos Scott e Barda conversando sobre suas infâncias que compartilharam em Apokolips, sobre os abusos e as dificuldades que sofreram. “Éramos prisioneiros. A vovó nos torturou. Não fomos felizes”. Scott mantem uma relação mais complicada com seu passado, mantendo certo afeto ao relembrar do que passou, demonstrando menos maturidade em lidar com isso do que Barda. É só nos relembrarmos da morte da Vovó Bondade no encadernado anterior. Mas isso não torna Scott blindado aos sentimentos negativos em comparação com Barda, só o faz menos inexperiente em manter sua saúde mental, lidando com ela da mesma forma que ele quis lidar também no encadernado anterior. Tom King teve grandes crises de depressão, um mal que assola cada vez mais a população mundial. Não diria que Tom King abre uma conscientização acerca da saúde mental, mas que ele “desabafa” nessa obra. Ele não propõe soluções ou abre um manual, mas ele conversa sobre o tema, mantendo diálogos francos e desafogando sobre o que o cerca. O já mencionado confronto verbal entre Scott e Barda não é um documento de como se portar, mas são palavras sinceras do nosso âmago que só alguém com muita sensibilidade poderia escrever. É sempre importante mencionar o cuidado que devemos ter com nossa saúde mental. Não devemos nos privar de ajuda médica, pois até os nossos super heróis podem ser afligidos por esse mal.
King continua afiadíssimo nos textos, escrevendo desde engraçadas conversas mundanas a frases carregadas de verdade. O humor aqui é mais circunstancial, como quando fúrias, guerreiras de Apokolips, aguardavam na sala de espera de um hospital enquanto eram recepcionadas por Scott, o comandante das forças inimigas. King se serve muito bem da loucura que é esse universo mantendo uma sutileza para criar humor que eu só lembro-me de ter visto dessa maneira com tamanha qualidade na HQ do Gavião Arqueiro pelas mãos da dupla Matt Fraction e David Aja. Há dois pontos memoravelmente distintos aqui, sendo um deles o jargão “Batman mata bebês”, que funciona muito bem como piada interna e outro à alusão da relação Stan Lee/ Jack Kirby, algo bem polemico até hoje, que King faz questão de alfinetar transformando Funky Fred em Stan Lee e Jacó (ou Jacob, nome de batismo de Kirby) no próprio Jack Kirby. Os textos mais pesados aqui são montados com propriedade vívidas. A experiência do autor na guerra, a depressão, os filhos e a esposa e sua formação acadêmica em filosofia estão todos aqui, em cada texto.
Mitch Gerads, ganhador do Eisner pela obra, está impecável. Admito que pouco falei dele nessa resenha, mas se tudo funcionou, foi muito por sua competência. A HQ, por mas amplo que seja, não é verborrágica, delegando bastante a arte de Gerads. As expressões dos personagens são muito bem utilizadas e as cenas nos enquadramentos são bem montadas, mantendo a dinâmica boa entre os personagens; com alguns close-ups em elementos aparentemente insignificantes e planos sequenciais divertidíssimos, Gerads consegue manter sua linha de comedia aqui, muito próximo ao que acontece no texto de King, pegando elementos mundanos e inserindo em elementos essencialmente fantásticos, dando aquela quebra de expectativa típica da obra. Sua arte sequencial demonstrando o desespero e a quebra de Scott expressa perfeitamente aquilo que o texto não diz. As cores, que também são do Gerads, contrastam muito bem entre pessoa e objeto, dando uma maior profundidade às cenas, vindo dos diversos estilos de colorização que aqui são usadas para criar um grande destaque entre uma proposta e outra da cena, que demonstra a vastidão do poderio artístico de Gerads.
Senhor Milagre volume 2 é o encerramento de uma das melhores HQ’s distribuídas nesse ano aqui no Brasil. Não é um final que lhe faça guardar o quadrinho e puxar outro logo em seguida, mas um final que em uma esfera mais elevada, se absorve na nossa vida, pedindo um tempo para absorção. A escolha do fechamento da trama é muito honesta com aquilo que estava sendo abordado, já que o nascimento é o principio da vida e a vida segue seu rumo. Ao fim de toda a história ela nos traz questões e reflexões que nos faz sentir que o tempo e o dinheiro investido nele valeram a pena. Quem não gostou do primeiro volume, sugiro que não avance para o segundo, mas que espere mais alguns anos para poder ler de novo, pois o escopo no geral é bem semelhante. Quem está lidando com algum tipo de transtorno psiquiátrico, sugiro que repense em ler essa obra, já que pelos temas tratados, ela pode vir a ser um gatilho. No centenário de Jack Kirby, Tom King e Mitch Gerads criaram uma das melhores HQ’s de super herói da década, com sofisticação, com reflexão e debate e uma fantástica combinação entre texto e arte. Dito isso, creio ter feito a minha parte aqui, mas antes, quero sugerir algo: Que tal indicar praquela pessoa que reluta em ler quadrinhos do gênero?
E lembrem-se: Darkseid é, mas nós também somos.