spoiler visualizarMiguel 08/08/2019
Quando a espiritualidade faz a diferença em nossa vida
Por José Maurício de Carvalho
Esse é um assunto que toca na raiz de nossa cultura. Nele a admiração que produz o encantamento com o mundo, de que falava Platão, ganha força, pois nós admiramos, em especial, a amplidão do assunto; a ele nos entregamos completamente, como sempre fazemos com tudo que fascina e apaixona. De Platão veio a tentativa de explicação para tanto fascínio: uma ordem ideal é sagrada. E o problema em questão encanta por duas razões fundamentais, a primeira lembra-nos Rubem Alves citando Durkheim: “o fiel que entrou em comunhão com Deus não é meramente um homem que vê novas verdades que o descrente ignora. Ele se tornou mais forte”.
A experiência do sagrado faz o homem diferente porque o fortalece existencialmente e melhora a sociedade. A segunda é que o problema de Deus nos coloca diante da exigência do bem. Não porque a moral dependa da religião, a moral tem outras fontes. A questão é que a vida social não pode ser compreendida na lógica do mundo ou da natureza, como ensinou Tobias Barreto. As coisas mais sérias que fazemos remetem a uma sobrenatureza, pois se agíssemos conforme a natureza ou o mercado, como se diz em nosso tempo, melhor seria matar crianças que nascem doentes ou mesmo antes delas nascerem e eliminar velhos improdutivos. No entanto, quanto mais mergulhamos nessa lógica, quanto mais agarrados aos argumentos econômicos, menos eles satisfazem como orientadores existenciais.
O filósofo brasileiro Tobias Barreto explica que a natureza produz a escravidão, a dominação, o domínio do forte sobre o fraco, do rico sobre o pobre, e afirma que é moral, ou cultural, que assim não seja. Ele diz: “o trabalho cultural consiste, porém, na harmonização dessas divergências, medindo a todos por uma só bitola”. Assim, a exigência de fazer melhor o que tem que ser feito aponta para o sagrado, não porque só os homens de fé devam buscar o bem, mas porque o bem a ser buscado por todos aponta para uma sobrenatureza, ou para o transcendente, já que não encontra no imediato razões de sustentação.
A experiência cultural de Deus no Ocidente caminha entre duas referências fundamentais, poderíamos dizer paradigmáticas, que estão na raiz da cultura. Essas experiências fornecem elementos importantes. Parece mais próprio dizer experiências de Deus, porquanto elas nascem e se estruturam de modo próprio, independente uma da outra. A primeira vem do oriente próximo, é a judaico-cristã. Ela apresenta um Deus que se saboreia na vida diária. É a experiência de um Deus companheiro de jornada, um Deus que inspira na história, um Deus a quem se fala e se escuta. É um companheiro a quem o homem dirige a palavra e chama de Tu ou de Pai, como fez Jesus. Esta experiência de Deus fomenta um sentido para a história, pois nela introduz a esperança num futuro redimido. Dá o exato sentido de uma existência temporal porque Deus é experimentado no dia a dia da história. Ela suscita a noção de responsabilidade e compromisso, do qual os mandamentos de Moisés constituem a primeira versão, além de ser um formidável código moral. Jesus Cristo atualizou esta fé, resumindo-a em dois pontos: o amor a Deus e aos homens. Nisso Ele resumia todas as exigências do antigo testamento.
A outra experiência de Deus nasceu no ocidente mesmo, ela veio dos antigos gregos. Superada a fase mitológica daquela sociedade, é com os primeiros filósofos que a experiência de Deus ganhou abordagem racional. Eles trataram da impossibilidade de um adequado entendimento deste ente que está acima de nós e que conosco não se parece.
Ao centrarmos nossa atenção nas experiências de Deus que nascem nessas duas religiões distintas, o cristianismo e o judaísmo, não se quer dizer que nada fora delas é bom ou relevante. Significa apenas que são elas que formaram a base da compreensão ocidental, mas todas as religiões, quando suas práticas passam pelo crivo crítico da razão, oferecem respostas que a razão não pode dar e são caminhos legítimos para ir até Deus. Em outras palavras, todas as religiões levam a Deus se não se afastam dos compromissos terrenos ou se perdem neles.
Os teólogos de nosso tempo apontam para a necessidade de um diálogo religioso capaz de permitir não só a experiência de Deus, mas a compreensão da fé e da tradição religiosa. Porém isso é difícil de realizar, como explica Jacques Dupuis: “toda tradição religiosa constitui, com efeito, um todo de que não é fácil isolar os vários elementos. Encontramo-nos diante de diversas visões globais do mundo, dentro das quais cada parte desempenha, como nos organismos vivos, sua função específica, mas uma equivalência dinâmica dos componentes de ambas as partes não é facilmente acessível”.
Uma tentativa de compreender diferentes experiências de Deus encontra-se em Karl Jaspers. Na nota prévia o autor explica o espírito que o guiou naquela obra: “o primeiro grupo fundamental é constituído por homens que, através da sua existência e essência, determinaram historicamente o ser humano como nenhuns outros o fizeram. Eles estão certificados por uma influência milenar contínua até os dias de hoje: Sócrates, Buda, Confúcio, Jesus. Seria muito difícil poder nomear um quinto que tivesse a mesma magnitude histórica, algum que ainda hoje nos interpelasse com a mesma elevação. Poder-se-á hesitar em denominá-los, de modo geral, como filósofos. Mas eles também tiveram para os filósofos uma importância extraordinária”.
Para Jaspers, sua metodologia histórico-filológico não é teológica, ela aponta para homens que sugeriram algo além da experiência imediata. Não vamos seguir Jaspers para além da cultura ocidental, mas vamos aproveitar algumas de suas observações sobre as experiências culturais de Deus na cultura ocidental.
Bom representante da experiência judaico-cristã é o profeta Jeremias. Para ele, tudo o que não serve para a edificação do Reino de Deus é imoralidade e injustiça, ou é dispensável à comunidade humana. O profeta ensinou a não confiar e a não procurar consolo no mundo. Ao contrário, ele estimulou buscar Deus, ele quer difundir a crença de que Deus acompanha o homem pela história. Afirma que Ele está presente nos fatos, mas não se confunde com eles, não se mistura com as coisas que tocamos com nossas mãos.
Da segunda experiência cultural que marca o ocidente informa-nos Xenófanes de Colofonte, aquele observador atento da natureza para quem Deus estava acima de todo sensível e habitava o além da razão humana. O fundador da Escola de Eléia deixou-nos um legado de meditação, do qual Platão se tornou representante. Platão ensinou que Bem devia ser o nome de Deus, pois nele estava o fundamento de todo conhecimento. Portanto, são experiências distintas e ambas deixaram forte marca na cultura. Jeremias e Platão são pilastras distintas da crença ocidental.
A experiência bíblica dá sentido ao sofrimento, que é difícil enfrentar. Sabemos que é duro presenciar: a dor de uma criança, a aflição das doenças e o desamparo dos velhos. Não é simples o luto de pessoas queridas. O sofrimento mobiliza. Não há como ser indiferente a dor, não importa a forma que ela apareça. Algumas vezes o padecimento decorre de nossa condição biológica ou psicológica, outras vezes nasce do modo como a sociedade está organizada, outras, ainda, origina-se na injustiça cometida contra pessoas ou povos inteiros. Nesse último caso, o problema é ainda mais triste, o homem é atingido pelas relações sociais ou pessoais que ele estabelece. Não é à toa que pulularam, ao longo da história, muitas queixas contra a indiferença de Deus diante do sofrimento humano, pois o padecimento é real em suas muitas faces. Essa experiência do sofrimento leva a interpretações distintas.
O sofrimento humano não tem sentido para Albert Camus. O silêncio de Deus diante das dores o levou a concluir, que Deus é onipotente, mas é mau, ou é bom, mas é impotente. Nos dois casos não é o Deus que poderia admitir. A preocupação com estas questões marcou a filosofia de Camus, conforme resumiu Espínola: “a falência dos sistemas, o silêncio de Deus, o absurdo do mundo é vivamente examinado por Camus”. Daí, concluiu o filósofo, cabe ao homem a responsabilidade por seu destino, uma vez que ele se encontra só diante do que vive. A revolta e a solidariedade lançam o homem no compromisso de fazer uma sociedade melhor.
Para essa conclusão de Camus contribuiu os rumos do pensamento moderno que limitou o crível ao que aparece ou pode ser verificado. Essa crença no fenômeno como o que expressa todo o real leva a conclusões como essa. Isso ocorre não somente porque afasta de Deus, mas porque distancia o homem da transcendência em geral, o que inclui o descaso com a filosofia. Assim, sem a abertura à transcendência a atividade filosófica também se perde e sem ela nossa consciência da realidade fica limitada ao que aparece. Enfim, a perda da transcendência parece ser um dos problemas de nossos dias, tanto para a fé religiosa como para a possibilidade de pensar além do experimentável.
Martin Buber afirmou o contrário de Camus, ele avaliou que o sofrimento estimula a fraternidade universal. Isso significa que uma das razões para justificar a ética e a solidariedade é porque somos capazes de entender os sofrimentos uns dos outros. Esse entendimento de Buber remete à noção de situação-limite concebida por Karl Jaspers, o qual fala da realidade comum do homem oriunda de sua fragilidade: “há situações que se mantém [...] essencialmente idênticas, mesmo que sua aparência momentânea se modifique [...]: tenho que morrer, tenho que sofrer, tenho que lutar, estou sujeito ao acaso e incorro inelutavelmente em culpa”.
Se as situações-limite são próprias do homem, como diz Jaspers, o sofrimento do outro é base para a criação de laços fortes de solidariedade universal. Nesse contexto, avaliou Buber, o sofrimento faz sentido e pode ser admitido como instrumento de Deus para educar e melhorar o homem.
Os hebreus queixaram-se, várias vezes na sua história, de sofrerem e serem abandonados por Deus, mas não chegaram à conclusão de Camus. Deus, para o homem bíblico e para Martin Buber respeita a liberdade humana e atua na história a partir dela. O mal que aparece no mundo vem da liberdade do homem e das contradições da criação. O Onipotente impõe a si próprio esse limite ao atribuir ao homem a responsabilidade de dividir o futuro do mundo e o ampara nas contradições. Esta compreensão do judaísmo foi assumida pelo cristianismo e se manifesta no sofrimento de Cristo. Na hora de sua morte, Jesus de Nazaré deixou evidente que os homens são responsáveis pela maldade que praticam. A maldade, o egoísmo e a insegurança de uns representa sofrimento para outros. Jesus pediu perdão a Deus porque o homem, muitas vezes, não tem consciência do mal que pratica e, por isso, adia a experiência do Reino. Porém, o que aparentemente não tem sentido, isto é, o sofrimento na cruz pode ser ressignificado. No caso Deus valeu-se da morte de cruz para apresentar Jesus ressuscitado e glorioso aos que nele creram. Assim, aos olhos da fé a morte física não é o fim da vida. Deus completou com o sofrimento de Jesus a educação dos apóstolos e os fortaleceu para levar adiante a Igreja criada por Jesus. O relato dos apóstolos mostra que Deus muda a história, mas quer contar com a parceira do homem nessa tarefa.
A experiência bíblica do Reino, anunciada no primeiro testamento pelo profeta Jeremias, culminou no reconhecimento de que cabe ao homem a responsabilidade pelos rumos da história. Assim, a experiência de Deus nos dois testamentos, ou sua negação pela mentalidade moderna, leva à mesma conclusão: cabe ao homem a responsabilidade por seu destino. Isso obriga o homem a evitar os males e sofrimentos dos quais ele próprio é responsável.
Na história do Ocidente as duas experiências de Deus, a hebraica e a grega, se misturaram e se penetraram. Elas são diferentes, mas chamaram atenção para a dignidade humana e para o compromisso com a vida. Nos dois casos trata-se da experiência humana de Deus.
Parece importante esclarecer o sentido de experiência, para que fique claro do que estamos falando e de como seguiremos com a questão. Experiência, como aqui se menciona, não se restringe à apreensão do mundo sensorial e empírico, naquela forma utilizada pela ciência moderna e descrita por Kant na Crítica da razão pura (1987), mas inclui as repercussões íntimas desse contato e avalia sua relevância. Tratamos de experiência como produto do pensamento que representa o mundo na consciência intencional pelo contato com as coisas, mas também com as impressões que esse contato deixa na consciência, como explica Braz Teixeira: “para uma adequada compreensão do conceito de experiência há, desde logo, que ter em conta que este termo comporta dois sentidos diferentes, objetivo um, subjetivo o outro. No primeiro deles designa-se habitualmente por experiência o ato de experimentar ou de fazer experiências das coisas, no mundo físico e da natureza, visando provar ou comprovar hipóteses científicas acerca de determinados fenômenos, das relações permanentes entre eles ou das condições da sua ocorrência ou verificação, enquanto, no segundo, se refere ao resultado vital ou vivencial do experimentado ou da vida vivida, reportando-se, por isso, ao mundo do homem e da consciência e não já ao dos fatos, dos fenômenos naturais ou das coisas”.
No primeiro sentido a experiência serve de prova de conhecimento, primeira etapa da comprovação da verdade, como ensinou Georg Hegel. Porém quando tomada no segundo sentido incluímos a repercussão íntima do fato sentido. É a compreensão que se forma não só pelo conhecimento lógico, mas pelas coisas vividas, o que é ordinariamente subjetivo, não pode ser transmitido a outrem porque é radicalmente pessoal. Ortega y Gasset comenta algo que ajuda a clarear o assunto. Ele diz que a dor de dentes do outro é espetáculo que assisto, mas é diversa dor de dentes que dói em mim como experiência própria: “vida humana como realidade radical é só a de cada um, é só minha vida [...]. A vida do outro, ainda que nos seja próximo e íntimo, é para mim mero espetáculo, como a árvore, a roca, a nuvem passageira. A vejo porém não a sou, quer dizer, não a vivo. Se ao outro lhe dói os dentes me é patente sua fisionomia, a figura de seus músculos contraídos, o espetáculo de alguém afetado pela dor, porém sua dor de dentes não dói em mim, e, portanto, o que dela tenho não se parece em nada com o que tenho quando dói em mim”.
Esse sentido amplo e íntimo da experiência foi tratado de diferentes modos pela filosofia e psicologia fenomenológica. Pode ser resumido, não como reprodução dos fatos materiais, como nos referimos à experiência objetiva do mundo, mas como criação da consciência intencional ou ato de experienciar (viver a experiência de algo posto) e não simplesmente de experimentar, ou conhecer, realidades distintas representadas no mesmo conceito.
Na tradição brasileira essa distinção foi bem estabelecida por Miguel Reale em “Experiência e cultura” e depois resumida em “Variações”. Aí experimentar e experienciar são usados para traduzir as duas formas de experiência antes indicadas. Eis como as diferencia: “não me conformo, porém com a aplicação exclusiva das palavras experimentação e experimentar, que a meu ver, cobre mais propriamente o campo da experiência natural ou do mundo das coisas, especialmente quando traduzem o processo mimético de produção ou reprodução, por exemplo, de um fenômeno físico, graças ao artifício de reproduzi-lo para observação de suas causas e a captação das leis que o regem. O que é feito, mediante os dons da arte (artifícios), demonstra bem o significado o segundo experimentar. Experienciar, ao contrário, além de se referir mais propriamente ao mundo do homem ou da consciência, guarda um sentido originário de vivência direta da realidade, de algo que é posto ou pelo menos pressuposto como sendo distinto, mas não separável, da pessoa que a observa e examina, qualquer que seja o fim visado, ético, estético ou científico”.
Feita essa distinção fundamental entre a experiência do mundo tomada no sentido do conhecimento objetivo e a experiência interna, isto é, entre experimentar o mundo e experienciar na intimidade, concentremos nossa atenção na história da filosofia ocidental, onde o experienciar Deus foi ricamente relatado. Todos trataram o problema partindo da realidade do mundo, que bombardeia na finitude da existência ou surge pelos males oriundos nas escolhas feitas. O problema de Deus surge por conta da experiência íntima do mundo.
Dessas experiências nascem, observou Emmanuel Kant, duas questões intrigantes. Na primeira, Deus não é objeto de conhecimento, pois Ele está acima de nossa sensibilidade e o que não chega pelos sentidos não pode ser conhecido. Não se trata, portanto, de negar ou afirmar Deus, pois ambas as posições têm caráter dogmático e antifilosófica. A filosofia crítica de Kant havia se encarregado de desmascarar os dogmatismos, não importando sua origem. A outra questão é que não há como abandonar o problema deixá-lo de lado como se ele não existisse. Vivemos a exigência fundamental de um imperativo racional que ordena fazer o bem a todos na medida que o queremos para nós mesmos. Assim, Kant resgatou, na vida prática, a dignidade humana presente na experiência judaico-cristã dando-lhe sentido ético. Ele diferencia em suas “Críticas” a experiência do mundo e a experiência íntima do bem que não prova a existência de Deus como sentido, mas permite experienciá-lo ou conjecturá-lo. Na conclusão da “Crítica da razão prática” o problema das duas experiências é resumido numa única e conhecidíssima frase: “duas coisas enchem o espírito de uma admiração e uma veneração sempre novas e sempre crescentes, na medida em que a reflexão as enlaça e as aplica: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim”.
Voltemos à experiência de Deus na história humana, onde ela surge de muitos modos e com diversos protagonistas. Ela pareceu acessível por uma intuição mística nos tempos do dominicano Johann Meister, conhecido como Mestre Eckart. Desconfiado da razão, o frade propôs um caminho de ascensão ao inefável através de metáforas e estados de êxtase voltados para a contemplação.
A tradição aristotélica, revitalizada por Santo Tomás de Aquino (1225-1274), olhara Deus como causa última do movimento do Kósmos, o ser mais perfeito do qual dependem todos os outros seres, concepção metafísica de cunho teológico que permitiu Gottfried Wilhelm Leibniz pensar na hipótese do relojoeiro que programa previamente o funcionamento do universo. Ao contrário da hipótese leibniziana, o Deus do português Manoel Bernardes era o supremo consolo de um mundo desprezível. Ele falou de Deus em meio à nulidade do homem e da natureza. Neste mundo empobrecido de valores, o homem se desespera na falta de alternativas e na ausência do que possa lhe servir de sustentação. Quando nada pode servir de consolo, o moralismo de Manoel Bernardes anunciou um programa moral com vistas a salvação. As coisas deste mundo foram vistas como um mal a ser evitado na busca do único consolo, do único objetivo aceitável para a vida, a conquista do céu.
Contrários a esta tradição que admite Deus como fundamento do mundo, Ludwig Feuerbach, Sigmund Freud e Karl Marx se insurgiram contra o Ser de toda consolação e proclamaram o direito do homem viver sem esperar o consolo de outro mundo. Deus era, assim concluíram, a mentira da infância do homem, usada para justificar a injustiça e a exploração do homem pelo homem. Eles afirmaram que o homem precisava viver sem crenças na divindade, pois elas foram eliminadas pelos mecanismos da história, da razão e da economia. O sonho iluminista, ao qual os marxistas aderiram, durou pouco, em menos de dois séculos a crença na razão positiva se tornou insuficiente para responder aos novos questionamentos trazidos pelas andanças da história. A noção de que o real se confundia com os dados emergiu da meditação contemporânea como o grande engano do século XVIII. Até a ciência, enquanto repetiu este discurso, esvaziou-se de humanidade e se tornou coisa amorfa. Ela foi deusa na modernidade tendo ponto alto na religião positivista. Hoje é entendida como obra do homem, importante, uma entre outros produtos culturais.
Essa forma de pensar encontra tratamento sistemático em Friedrich Nietzsche, onde a falta de experiência de Deus se mostra num pensamento ateísta, mas principalmente na descrença das formas metafísicas da razão herdada dos gregos. O modo de pensar apolíneo, isto é, da razão, da ordem, da racionalidade, encontra-se em franca decadência, pela afirmação da vida espontânea e extasiada. Escreve o filósofo, indicando que os sinais da crise emergente naqueles dias, era anúncio da decadência do modo de pensar racional ou apolíneo: “o que há em nossa serenidade. O maior dos acontecimentos recentes - que Deus está morto, que a crença no Deus cristão caiu em descrédito - já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Para os poucos, pelo menos, cujos olhos, cuja suspeita nos olhos é forte e refinada o bastante para esse espetáculo parece justamente que algum sol se pôs, que alguma velha, profunda confiança virou dúvida, para eles, nosso velho mundo há de aparecer dia a dia mais poente, mais desconfiado, mais alheio, mais velho. [...] Esse longo acúmulo e sequência de ruptura, destruição, declínio, subversão, que agora estão a vista: quem adivinharia hoje já o bastante deles, para ter de servir de mestre e prenunciador dessa descomunal lógica de pavores, de profeta de um ensombrecimento e eclipse do sol, tal que nunca, provavelmente, houve ainda igual sobre a terra?”.
Sigmund Freud também considerou o assunto e avaliou ser a crença em Deus uma invenção do homem primitivo. Ele não se refere a tal crença como experiência no sentido que aqui se dá, mas como invenção da mente primitiva. Ele escreve que a crença em Deus é ilusão criada pela fragilidade da psiquê humana: “avaliar o valor de verdade das doutrinas religiosas não se acha no escopo da presente investigação. Basta-nos que as tenhamos reconhecido como sendo, em sua natureza psicológica, ilusões. Contudo, não somos obrigados a ocultar o fato de que essa descoberta também influencia fortemente nossa atitude para com a questão que a muitos deve parecer a mais importante de todas. Sabemos aproximadamente em que períodos, e porque tipo de homens, as doutrinas religiosas foram criadas. Se, ademais descobrimos os motivos que conduziram a isso, nossa atitude para com o problema da religião experimentará um acentuado deslocamento. Dir-nos-emos que seria muito bom se existissem um Deus que tivesse criado o mundo, uma Providência benevolente, uma ordem moral no universo e uma vida posterior; constitui, porém, fato bastante notável que tudo isso seja exatamente como estamos fadados a desejar que seja. E seria ainda mais notável se nossos lamentáveis, ignorantes e espezinhados ancestrais tivessem conseguido solucionar todos esses difíceis enigmas do universo”.
Portanto, para Freud, a experiência de Deus é ilusão ou projeção humana. O homem primitivo criou com o conceito Deus uma explicação firme e sólida quando, pela imaturidade da razão, não conseguia conviver com a ausência dessa ordem universal. E o pensamento moderno desejou mostrar que é para essa conclusão que nos levava a experiência de natureza conduzida pela ciência moderna.
No entanto, nossa experiência do mundo não leva inevitavelmente a tais conclusões como fez o marxismo e a psicanálise. Há muitos exemplos de como a experiência de Deus e a reflexão sobre os limites e dores do homem se misturaram no nosso passado sem caminhar para a invenção. Embora a história tenha se encarregado de revelar a limitação de todas as visões do problema, de algum modo elas ajudaram a aprofundar o assunto representado pela busca de sentido para a vida. Estas reflexões sobre Deus fazem parte de um passado que não temos como renegar quando estamos possuídos pelo desafio de tecer um sentido novo para a existência. Este é o desafio que se apresenta à nossa vista. Estamos começando o terceiro milênio com a expectativa, mas não a certeza, de elaborar as bases para uma ordem humana mais justa e ecológica.
Para nós, toda afirmação sobre Deus é fruto da fé, no sentido de que não se pode comprovar por experiência objetiva como nas ciências. Deus se revela no diálogo íntimo, ou seja, no encontro direto. E Deus é também uma experiência cultural. No caso da tradição cristã, tão importante para o pensamento ocidental, ficamos diante de um Deus que não apenas se situa acima da razão, mas que é loucura quando avaliado por critérios humanos. Um Deus absurdo que morreu abandonado pelo céu e pelos amigos da terra, um Deus cuja dimensão de amor e entrega extrapola a lógica humana.
O curioso é que estas experiências permitiram uma conjectura, como sugeriu denominá-la Miguel Reale, que ajudou a clarear a vida do homem. É que a conjectura, esclarece Reale: “é a forma de verdade que nos resta quando nos falham as tentativas da razão”. Podemos ir ainda mais longe se nos lembrarmos da lição de Ortega y Gasset. O filósofo espanhol asseverou que o “cristianismo é o descobridor da solidão como substância da alma”. Pois apenas quando entendemos nossa existência como solidão radical podemos descobrir as razões pelas quais devemos nos empenhar para fazer o nosso mundo, para edificar um espaço de humanidade. A solidão é experiência básica porque nela a alma toca nosso autêntico ser. Ao seu lado se dá uma outra: a do amor, que ilumina a existência e é mais forte que a morte. Sobre o amor lembremos do que escreveu o poeta Anton Van Duinkerken que resumiu no aceno da esposa que lhe foi retirada, o significado do amor. No aceno da amada, a humanidade mostrou-se consciente, com o poeta, de que a vida é mais do que a inteligência, embora não possa ser uma aventura realizada sem ela.
Nosso tempo entendeu que a filosofia não mais encontra força na metafísica pensada como teologia, porque nem o Kósmos pode ser visto como totalidade, nem o eu como substância e nem Deus como fundamento racional. O que resta é olhar a Deus como alguém com quem se fala, um Tu especial na avaliação de Martin Buber. E como Buber propõe essa relação com Deus? Ela menciona três fatos indivisos que se resume a seguir: o primeiro é o da plenitude da reciprocidade, segue-se o da confirmação do sentido, não como conhecimento conceitual por fórmulas ou imagens, mas como certeza. O terceiro é a inseparabilidade entre o sentido e a vida no mundo, o sentido é uma construção nessa e não para outra vida. Pode se observar nessa forma de pensar que vida e relação são próximas. Esse entendimento de Deus como um Tu que se coloca além de nossa capacidade de representação, mas que se mostra no encontro direto e pessoal também aparece na filosofia de Jaspers como uma das formas de englobante.
Portanto, depois de olhar a tradição ocidental, a defesa e a recusa da experiência de Deus, ela fica como íntima e pessoal. Encontramos ainda, na tradição ocidental, elementos dessa experiência nas diferentes instituições religiosas. Os objetos teológicos da metafísica não dão respostas para o homem de hoje. Estamos desafiados a viver sem falsos consolos, mas também sem desespero. De fato, podemos descobrir, entorno de nós, pessoas comprometidas com valores amplos e escolhas pessoais que lhes dão coragem para suplantar os limites da existência diária. Brota delas a serenidade que a sabedoria e o contato com a transcendência podem proporcionar. Podemos encontrar nos valores que o homem projeta no mundo a razão de sua vida, projeto que faz sentido se emerge das contradições da existência. As experiências de Deus estão juntas do homem nas horas de desolação. Ele não pode abandoná-las, assim parece, nas escolhas do futuro que faz. É do que falaremos na próxima seção.
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