Silenciando o passado

Silenciando o passado Michel-Rolph Trouillot


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Silenciando o passado


Poder e a produção da História




Cresci numa família que se sentava com a história à mesa de jantar. Por toda a sua vida, meu pai se envolveu numa série de atividades profissionais paralelas, nenhuma das quais o definia por si só, mas estavam em grande medida mergulhadas em seu amor pela história. Eu era adolescente quando ele deu início a um programa regular na televisão haitiana que explorava detalhes pouco conhecidos da história do país. Aquele programa raramente me surpreendia: as histórias que meu pai contava a sua audiência não eram diferentes daquelas que contava em casa. Eu havia catalogado algumas delas nos cartões amarelados que encarnavam um imenso dicionário biográfico da história haitiana que meu pai jamais concluiu. Mais tarde, no curso de história geral que ele lecionava na minha escola secundária, esforcei-me mais que meus colegas para conseguir uma nota razoável. Mas suas aulas, por melhores que fossem, jamais superavam o que eu aprendia em casa aos domingos.

Domingo à tarde era quando o irmão de meu pai, meu tio Hénock, vinha nos visitar. Ele era uma das poucas pessoas que eu conhecia que realmente conseguia sobreviver por conhecer algo de história. Oficialmente, era o diretor dos arquivos nacionais, mas escrever era sua verdadeira paixão, e publicava pesquisa histórica mais rápido do que qualquer leitor seria capaz de acompanhar – em livros, revistas e jornais, por vezes seu veículo preferido. Aos domingos, testava suas ideias em meu pai, para quem a história vinha se tornando cada vez mais apenas um hobby, à medida que seu escritório de advocacia prosperava. Os irmãos discordavam com mais frequência do que concordavam, em parte porque realmente viam o mundo de formas bastante diversas, em parte
porque o calor de suas divergências, tanto políticas quanto filosóficas, alimentava o seu cerimonial de amor.

A tarde de domingo era o momento ritual dos irmãos Trouillot. A história era o álibi para expressar tanto seu amor quanto seus desacordos com Hénock exagerando seu lado boêmio e meu pai afetando racionalidade burguesa. Discutiam sobre personagens há muito mortas, haitianas e estrangeiras, como se estivessem tagarelando sobre os vizinhos com a distância calculada de quem conhece detalhes íntimos da vida de pessoas que não fazem parte da família.

Se eu não desconfiasse de genealogias óbvias, poderia invocar essa mistura de intimidade e distanciamento e as posições de classe, raça e gênero que a tornavam possível como parte crucial da minha herança intelectual. Mas aprendi por conta própria que a questão nesse tipo de pretensão costuma ser muito menos o que nela se procura afirmar do que o fato de que se a afirma. Crescendo como cresci, não podia escapar da historicidade, mas também aprendi que qualquer um em qualquer lugar pode, com a dose certa de suspeição, apresentar questões à história, sem pretender que essas mesmas questões escapem à história.

Muito antes de ler as Meditações Atemporais de Nietzsche, eu sabia intuitivamente que as pessoas podem sofrer de overdose histórica, reféns complacentes dos passados que criam. Aprendemos isso em muitas casas haitianas no auge do terror dos Duvaliers, bastava olhar pela janela. Sendo ainda como sou e olhando o mundo de onde olhava, a mera proposição de que se poderia, ou deveria, escapar da história parece-me se não tola, fraudulenta. Acho difícil conferir respeito àqueles que
genuinamente acreditam que a pós-modernidade, seja qual for, permite que afirmemos não ter raízes. Pergunto-me por que terão eles convicções, se é que as têm. De modo similar, alegações de que atingimos o fim da história ou de que estamos de certa maneira mais próximos a um futuro em que todos os passados serão iguais fazem que eu me pergunte sobre os motivos de quem afirma tais coisas. Tenho consciência de que há uma tensão inerente à sugestão de que deveríamos ter em conta nossa posição ao mesmo tempo em que assumimos algum distanciamento dela, mas acho que essa tensão é tanto saudável quanto prazerosa. Acho que, no fim das contas, estou mesmo invocando aquele legado de intimidade e estranhamento.

Jamais estamos tão mergulhados na história como quando fingimos não estar, mas se pararmos de fingir, talvez possamos ganhar em compreensão o que perdemos em falsa inocência. Ingenuidade é com frequência uma escusa para os que exercem poder. Para aqueles sobre quem esse poder é exercido, a ingenuidade é sempre um erro.

Este livro é sobre história e poder. Lida com as muitas formas em que a produção de narrativas históricas envolve a desigual contribuição de grupos e pessoas concorrentes, que têm um acesso desigual aos meios dessa produção. As forças que pretendo expor são menos visíveis que o fogo das armas, que o direito de propriedade ou que as cruzadas políticas. O meu argumento é que nem por isso são menos poderosas.

Também quero rejeitar tanto a proposição ingênua de que somos prisioneiros de nossos passados quanto a sugestão daninha de que a história é o que quer que fizermos dela. A história é fruto do poder, mas o próprio poder nunca é transparente a ponto de sua análise ser supérflua. A marca infalível do poder pode bem ser sua invisibilidade, o desafio inescapável será expor suas raízes.

História

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on 29/1/22


O autor nos conta um pouco de sua história e do seu país, o Haiti, em que ambas as histórias se confundem. Excelente livro para quem gosta de história como disciplina assim como quem gosta de história como romance ou biografia. Vale muito a pena a leitura.... leia mais

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Clarissa P.
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Pepê
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15/04/2021 00:20:24

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